Os jornais dão que Curitiba beira os 2 milhões de habitantes. Para ser mais preciso, 1.828.092 pessoas. Ô Tempo, há quanto tempo? – parece vejo, na Rua XV, a inesquecível silhueta de E (ponto!), G (ponto!), C (ponto!) – que era como o jornalista Ernane Gomes Correia, tonitruante, se apresentava. Invariável a capa de gabardine e o guarda-chuva enganchado ao braço. A aparecer reaparecer feito um personagem.

A voz gravíssima, cola o corpo ao meu, cutucando-me com um dos lados do cotovelo, justo o do braço que segurava o guarda-chuva, um sestro seu para chamar a atenção do interlocutor: “Bueninho, acabo de ouvir na Rádio Nacional. Sabe quantas almas somos?”. Jamais esquecerei o riso que conteve, a cara franzida para não transbordar a felicidade: “Sabe quanto?”. Novas cotoveladas: “Somos 702 mil e 35 almas!!! 702 mil e 35, meu guri!!!”.

Toda vez que novas estatísticas demográficas circulam, com relação à nossa Curita velha de guerra, me acorda dentro este pequeno grande episódio, pleno de significados. Ernane Gomes Correia sonhava o dia em que fôssemos metrópole, e ele pudesse se diluir por aí, ele e suas singularidades. E que a cidade não fosse o reduto acanhado de onde, à frente dos cafés,
nomeavam-se chifrudos e homossexuais, desquitadas e damas da vida airosa.

Acho que nasceu ali a idéia de ser invisível em Curitiba, posteriormente adotada pelo escritor Jamil Snege. Aliás, dono de um riquíssimo folclore em torno de E (ponto!), G (ponto!), C (ponto!). Snege entendia, mais do que ninguém, o que dentro daquela silhueta, a de E.G.C., aspirava despregar-se, numa pirueta que bem podia se dissolver num cintilante anjo de gordas asas de purpurina.

Feroz, entanto, a Curitiba cartorial nos vigiava, noite e dia, dia e noite, madrasta e bruxa, inquisidora implacável. Ainda ontem, senhores, não íamos além do Bacacheri. Daqui a pouco, em 2013, garantem os técnicos,

seremos 2 milhões de habitantes.

Só no circuito urbano.


Ernane não gozou a anonimidade das ruas nem a juventude em flor
pelos calçadões da XV. Não viu florescerem, como cogumelos de ficção-científica, os shoppings centers. Não pôde comparar Curitiba ao Rio de Janeiro que tanto amava e aonde se perdia, vez em quando, por certo a capa de gabardine a voar com ele por Copacabanas e Leblons, Glórias e Flamengos…

Mas também não viu a procissão dos mortos das segundas-feiras, estampada no próprio jornal, a Tribuna do Paraná, onde tinha uma coluna famosa.
Os mortos de agora, do tiroteio e do crack, nos baldios da Fazendinha e do Sítio Cercado.

Melhor assim. E.G.C. hoje por certo canta e dança no horizonte. Do jeito que ele queria.

Wilson Bueno (7/9/2008) O Estado do Paraná.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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