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Eu li em algum lugar, não lembro onde, que era a banda que Beckett teria, se Beckett tivesse uma banda de rock. O que não deixa de ser interessante, imaginar Beckett correndo em sua bicicleta pelas ruas de Paris, com sua bolsa Gucci (sim, ele usava uma bolsa Gucci) para gravar algo chamado A Walk Across The Rooftops ou Hats, nome dos dois clássicos primeiros discos do The Blue Nile, a banda que Beckett teria, enfim.

O escritor já havia abandonado Dublin há tanto tempo e, cotidianamente, até um pouco da sua língua natal, naquele início da década de 80. Andava escrevendo de tudo, pequenas novelas, pequenas peças, poemas, Ohio Impromptu, Catastrophe, What Where. Quando Hats do The Blue Nile foi gravado, ele já estava internado no hospital, no período das vésperas de sua morte, procurando palavras para seu poema “Comment dire”. Quando o disco foi lançado, Samuel Beckett morreu sem escutá-lo, é claro.

Foi um crítico da Rolling Stone, eu acho, que supôs a incrível analogia. É claro, não seja tão exigente, várias peças não se encaixam nesse jogo. O The Blue Nile era de Glasgow, assim como o The Jesus and Mary Chain, e mesmo que o maior dramaturgo do século passado tivesse cruzado um bar de Saint German de Prés que exalasse os sons eletrônicos e a envolvente voz de Paul Buchanan, ele não teria notado, concentrado no mundo de suas próprias vozes. A relação serve apenas à idéia de que a banda de Buchanan, Robert Bell e Paul Joseph Moore, o The Blue Nile,  foi uma das mais misteriosas e belas manifestações da música popular daquela década e, enfim, de nossos tempos. Com uma precisão sonora e temática capaz de lembrar, sensorialmente, por que não?, Beckett.

E, é verdade, aqueles garotos estudaram, juntos, literatura de língua inglesa na universidade, além de engenharia eletrônica e matemática. Enquanto eu andava pelo Rio e por Curitiba, assistindo ao concerto de microfonias do The Jesus and Mary Chain, interessado naquela distante e dissonante cidade nas Highlands, nas Darklands, eles batizavam a banda com um dos nomes dos Rios Nilos e até gravavam uma demotape com uma música chamada Rio, o que supostamente demonstrava o interesse deles na distante e solar cidade do sul do planeta.

Com o passar do tempo, um neblina mística envolveu a banda na história da música e eternizou sua pequena obra: dois discos perfeitos e mais dois ótimos discos posteriores. As duas relações possíveis com a banda são, em ordem de popularidade: desconhecê-la completamante ou amá-la eternamente. Buchanan dizia compor documentários imaginados. Suas músicas “perfeitas” apaixonaram definitivamente seus poucos seguidores e tudo só aumentou com o lançamento de Hats, a obra-prima, do final daquela década. O tal disco com, pelo menos, nome lembrando peças de Beckett.

Heróis românticos, na minha preferida The Downtown Lights, eles  enchiam minha imaginação de quartos alugados em hotéis baratos, com janelas abertas para a década do neon e dos cigarros. Eles diziam que no amor somos todos iguais, sempre andando a mesma rua vazia, sem ninguém ao nosso lado.

“Nileism” foi a palavra colhida para definir sensorialmente a obra criada pela hiper-sensibilidade daqueles garotos. Talvez não explique nada para ninguém, além dos que os conheceram. E saber da existência do The Blue Nile suspende por alguns minutos nossas premonições distópicas desse mundo. Conhecer esses dois discos é como guardar dois livros na floresta do final de Fahrenheit 451 do Ray Bradbury. Aqueles discos moram numa época, contraditóriamente, ingênua e profunda. É um mergulho dentro da nossa inocência. Quando sonhávamos mais e exigíamos menos realidade da arte. Quando precisávamos de menos porque exigíamos mais.

***

O disco do R.E.M. é o bastante para continuarmos vivendo juntos com Michael Stipe para sempre. É claro que o primeiro clássico Murmur e todo o período da I.R.S Records ajudaram a estabelecer o lugar da música independente em todo o mundo, trazendo luz a todo o período seguinte, com o Pavement, por exemplo. Também é claro que amamos a fase posterior da Warner de Out of Time, Automatic For The People e do sujo Monster. Mas o curioso é que amo tanto ou mais New Adventures In Hi Fi e Reveal. Acho duas jóias. No início dos anos 90, eles viviam o auge de sua popularidade. Haviam lançado a obra-prima Automatic for the People e assinado o contrato com a Warner de $80 milhões, o maior da história até aquele momento. Mas ao contrário de todas as expectativas comerciais, num dos maiores casos de sabotagem e terrorismo artístico que conheço, o grupo lançou um dos discos essenciais da minha vida: o verborrágico e incrível New Adventures in Hi Fi. E o single mais dark que já ouvi: E-bow The Letter. Uma carta-canção escrita às 4 da manhã dentro de um ônibus de tournée. No videoclipe da música, cheio de imagens de estradas, cores baixas, horas mágicas, lâmpadas fluorescentes, alumínio e céu, um rosto pelas sombras se insinuava: o de Patti Smith.

Já auto-definido como um cachorro de três patas, sem Bill Berry,  seguiram para tour de neons do complexo Up e  depois lançaram Reveal (o disco sobre um verão místico) que conseguiu ampliar solarmente a fase muito inspirada, e injustamente não respeitada. O cachorro tropeçou uma única vez em 30 anos: Around The Sun não convenceu, primeiro, a eles mesmos. Logo gravaram o ótimo Accelerate e agora o batizado (por Patti Smith) Collapse Into Now, gravado em Berlim, no Hansa Tonstudio, o mesmo da trilogia de Bowie, o mesmo de Achtung Baby! do U2. Ouça ou veja o video de Überlin, faixa 3 do novo disco, e aos 45 segundos da música cante baixinho, junto com Michael Stipe, “I am flying on a star into a meteor tonight, I am flying on a star, star, star”. Você perceberá porque o seu amor será eterno. Felipe Hirsch ( O Globo)

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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