Reza a lenda — ou seria verdade? — que Flaubert leu cerca de 1.500 livros pra extrair besteiras sobre todos os campos do conhecimento e colocar na boca de Bouvard e Pécuchet, heróis do seu último livro. Segundo um outro autor, Flaubert fez com eles uma triunfante celebração de sua compulsão maníaca de observar o mundo. O livro foi precursor do nosso FEBEAPÁ — Festival de Besteiras que Assolam o País — com o qual Stanislaw Ponte Preta nos ajudou a suportar o peso dos anos de chumbo grosso.
Pra mim, Flaubert foi o primeiro escritor-cientista. Ele testava tudo antes de usar. Mesmo assim, depois disso, se torturava pra transformar em frases bem soantes pra compor suas sinfonias. Ele se gabava de que toda vez tinha que pôr o oceano dentro de uma garrafa. Sem transbordar! Ele vivia dizendo pro Zola: observar, observar e depois observar de novo!
O escritor Henry James disse, numa introdução do livro Madame Bovary, que achava incrível o fato Flaubert de ter iniciado Bouvard e Pécuchet, de não ter desistido da obra antes de ser descartado por ela. Acrescentou que ‘é seco como areia e pesado como chumbo’. E foi além relembrando que Flaubert amaldiçoava os temas escolhidos, desejava não tê-los escolhido e odiava o momento em que se dedicava a eles.
Claro que Bouvard e Pécuchet ficou inacabado. Foi impresso depois da morte do escritor no pé em que estava. Só poderia ser interminável, pois é desmesurado o acúmulo de besteiras pelos séculos afora — maior do que o de corpos celestes. Flaubert, pra continuar no céu, se meteu num buraco negro. Dentro dele, ainda teve tempo de projetar um novo livro que chamava previamente de A espiral — um romance sobre a loucura, ou, antes, sobre a forma como se enlouquece. Esse projeto nunca veio à tona — pra desgosto de editores e leitores que ainda não foram atraídos pelo monstro de onde nem a luz escapa.
Rui Werneck de Capistrano é autor de Nem Bobo Nem Nada – 5|5|2011