Todo mundo literário já meteu a colher nessa panela fervente que habita no inferno dos tradutores. A minha colher de pau é de segunda mão. Vem do século passado, lá por 1981.

Num sebo, como sempre, encontrei Augusto Meyer – um daqueles gaúchos de alta estirpe. Ele tem um livro chamado A forma secreta (Rio de Janeiro, Editora Francisco Alves) com estudos literários.

Ali encontrei a labbia. Ela foi tirada de um poema de Dante. Meyer mostra o quanto pode ser traiçoeira a tradução de um simples soneto. O terceto — e par che de la sua labbia se mova / un espirito soave pien d’amore / che va dicendo a l’anima: Sospira. — foi traduzido diversas vezes com um erro básico. Veja o primeiro verso e seus respectivos tradutores:

E dos seus lábios cuido que se move… (Gerino dos Santos)
E dos seus lábios emanar parece… (C. Tavares Bastos)
Parece que do seu lábio se mova (Arduino Bolivar)
E do seu lábio é como se surdira (Heitor P. Fróes)

Meyer nos dá conta de que labbia não pode chegar nunca, em tempo algum, a ser lábios. O dicionário italiano Volpi diz: “Labbia, sost, f. Viso, Aspetto”. O dicionário Italiano-Português, de João Amendola (São Paulo, Fulgor, 1961) registra: “Labbia (ant.), s. f., cara, rosto, semblante”.

De lábios a semblante vai uma distância enorme. Mas já se disse muitas e muitas vezes que poema se lê do jeito que se quiser. Os apressados tradutores foram pelo caminho da grafia e se perderam na selva do significado. Sabe-se que Flaubert dava ampla preferência para o som e a harmonia das palavras e das frases. Renunciava facilmente ao sentido. E se torturava durante horas pra achar uma frase bem soante. Joyce se deliciava com isso, também. Só pegar uma simples frase de Finnegans wake: With Bro Cahlls and Fran Czeschs and Bruda Pszths and Brat Slavos. É puro som.

No texto Tradução e traição, Meyer até se diverte, dizendo que, pra muita gente, lábios diz muito mais do que semblante ou rosto. Mas, erro de tradutor é erro gravíssimo — sujeito a mais sete pontos na carteira de motorista.  Entre o sentido poético e o da palavra em estado de dicionário, deve-se medir uma distância que não passe adiante a preguiça e a burrice dos tradutores. O som e o sentido devem dialogar e não trombar com nossos pobres tímpanos tão fatigados por barulho de bate-estacas em automóveis raivosos.

Rui Werneck de Capistrano é tradutor de arquivo morto (31|05|2011)

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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