Sempre que penso na Rússia, vejo aquele cocheiro do conto do Checov. Envolto em surrado manto, coberto pela nevasca implacável, ele espera clientes e monologa tristemente — ou fala com seu manso cavalinho — a imobilidade, a neve, o frio, a solidão.
A Rússia são distancias imensas — as vastas estepes. Agora, imagine um escritor desesperado numa noite de insônia, cheio de dúvidas, nervos em frangalhos, com a fome rondando como um cão sem dono. Ele é um tipo de escritor — descrito por ele mesmo — forçado a mostrar o terrível e chocante pântano das coisas triviais, enquanto os leitores roubam dele seu coração e sua alma.
O escritor acorda o criado Iakim, apenas um garoto, e pede que acenda a lareira. Como? Até aquele momento a lareira esteve apagada? E o frio? É fevereiro de 1852, pleno inverno! Não importa. Uma vez aceso o fogo, o escritor fica ainda mais impaciente. As chamas lambem seus nervos e ele pega um folhoso manuscrito — sua obra mais recente — e vai na direção da lareira. O garoto, percebendo o suicídio iminente, tenta segurá-lo. Mas não consegue — é só um garoto contra uma fera enraivecida. As folhas se espalham dentro da lareira e o fogo vai consumindo rapidamente. O garoto ainda quer pegar o que está apenas chamuscado. A ordem é que tudo se queime. O escritor fica contemplando, absorto, as chamas que selam seu definitivo suicídio literário. Quando o espetáculo pirotécnico termina, ele começa a chorar amargamente.
Enquanto isso, seus leitores, em casas mais ou menos aquecidas, sonham felizes com o que seria — se completada em três partes — a Divina Comédia das Estepes.
A segunda parte de Almas mortas está definitivamente destruída. Em 1845, o escritor já havia queimado o primeiro manuscrito da segunda parte. E reescreveu. Agora, o fim.
Esta é a tragédia dos grandes escritores russos. Ela percorre toda a imensidão das estepes — tão imensas como as pálpebras do sombrio Vii — que chegam até o chão e nunca se erguem. O olhar dele também nunca se ergue do chão.
Por isso, à lista lá do começo, acrescento Gogol — morreu de inanição, por jejum autoimposto, aos 43 anos. Nove dias depois da queima do manuscrito. Quando Dostoiévski lançou seu primeiro livro Pobre gente, em 1846, um poeta o saudou como um novo Gogol.
Rui Werneck de Capistrano é autor de Nem Bobo Nem Nada