Aqui, quero é falar do que ele denominou, no segundo livro de memórias, de ‘superprodução cultural’ que resultaria num ‘crash’ semelhante ao da Bolsa de Nova York em 1929. Baudrillard diz que o homem médio de hoje não tem mais tempo pra consumir quase nada da exponencial produção cultural, que tomou proporções avassaladoras em todos os campos.
A globalização é uma realidade em termos culturais. Recebemos uma exagerada carga diária proveniente dos mais longínquos recantos do mundo e fazemos de tudo pra sobreviver a ela. Tudo vem via rádio, cinema, internet, televisão e, muitas vezes, chega ao vivo (exposições, shows de música, etc.). A produção é absurda mesmo. Basta um dia sem visita ao Youtube, por exemplo, e temos uma enxurrada de novos vídeos. Baudrillard chega a sugerir que se faça no mundo uma triagem, uma limpeza, um sangramento, pra que se possa ‘salvar o valor-signo’ das culturas. Isso foi feito na Grécia Antiga, imagine, pois acreditavam que havia um excesso de peças teatrais e por conta disso muitas delas foram extirpadas.
Analisando por outro ângulo, a superprodução cultural é condizente com as facilidades de locomoção e de comunicação (no sentido de irradiação de eventos) do ser humano. Assim, um homem de Curitiba pode conhecer com uma balinesa que está em Roma e um filme iraquiano pode influenciar um cineasta cipriota que mora em Cingapura. Isso em questão de horas de voo. Ou de minutos, se for via internet. O que Baudrillard não abordou, e eu acho da maior importância, é o valor da indiferença, da distração e do desinteresse que fazem parte da nossa constituição humana. Andando pela rua, uma ou outra mulher pode chamar a atenção. Quantas passam sem deixar um perfume no ar? E quantos vídeos transitaram pelo Youtube e você nem assistiu? Quantos livros deixou de ler da fornada que saiu em 2010? Quantos filmes passaram em branco nos cinemas? Quantas peças de teatro nem viu?
Nossos genes nos comandam, segundo Richard Dawkins (O gene egoísta). E esse comando faz com que sejamos atraídos, até inconscientemente, por diversas coisas. Por que gostamos de um tipo de rosto? Ou odiamos o comportamento de uma pessoa? Os genes são egoístas e escolhem o que acham melhor, até sem nosso consentimento consciente. É só saber que, em cada fecundação, existem sessenta e quatro milhões de combinações possíveis pra formar cada novo ser humano. Transferindo pra cultura, produto de quantas combinações você é? Tem gente que, digamos, é pobre em combinações e vive muito bem com elas. Tem gente que abrange dezenas de campos culturais e vive mal. A adaptação ao meio ambiente é tudo. O importante e incrível, pra mim, é que poucas vezes tocamos o interesse das pessoas com quem convivemos. Menos ainda conseguimos nos fazer ouvir por pessoas desconhecidas. Tente dar uma dica de música pra alguém que não conhece. Ou de filme. Ou de livro. Ou de comida. É difícil. Isso muitas vezes nos causa uma angústia terrível. O poeta Drummond tem um poema que tenta mostrar a impossibilidade da comunicação, de se ouvir uma voz de humana. Paradoxalmente, ele consegue nos comunicar e tornar indignados, mas a solidão humana continua a mesma. Sinceramente, é terrível que vivamos todos no mesmo mundo e tenhamos tantas diferenças. Porém, temos que ver que foram essas diferenças, essas intransigências individuais, que nos fizeram resistir por tanto tempo na linha evolutiva. Nossa desespecialização é nossa salvadora.
Aonde quero chegar? Só sei que a gente tenta ‘transmitir os genes’ a todo custo pra sobrevivência biológica. E, do mesmo modo, tentamos ‘transmitir os memes’ pra sobrevivência cultural. Acontece que a combinação dos genes entre si e dos memes entre si é completamente aleatória no correr do tempo. Os cientistas dizem que não podemos prever nada em termos de evolução biológica, apenas colher os resultados. Na cultura, acontece a mesma coisa. Embora tenhamos muitos guardiões culturais indignados com a produção alheia, o que ficará pra posteridade só a posteridade poderá registrar e, talvez, aproveitar. Depende de fatores que escapam à nossa compreensão. Por isso, um elogio a uma obra já é uma crítica a todas as outras. E é mais econômico e menos desgastante em termos de vida. Um dia comparei a Arte à coceira que dá no calcanhar de Aquiles do pé que não existe mais. Foi amputado. A gente quer coçar, mas…