18

O nome da cidade é Llanfairpwllgwyngyllgogerychwyrn
dobwllllantysiliogogogoch. Eu na estação, metade do caminho do trem que me levará até o ferry boat que cruzará o mar em direção à cidade dos (meus) sonhos, Dublin. Essa é a fotografia. Difícil acreditar que exista um nome de cidade maior que esse no planeta. Fica no País de Gales. Significa “igreja da Santa Virgem Maria em um vale de avelã branca próximo ao redemoinho de água da igreja de São Tysilio com a caverna vermelha”.

Na próxima, estou cruzando o Mar da Irlanda. A chuva fina embaça os vidros, a neblina nubla o horizonte, o mar cinza reflete o céu escuro. Murmuro o canto de Lorelei do Pogues:No photograph of you beside me”. Conheci esta canção tão novo que nem prestei atenção que o seu cenário era o Rio Reno longe dali. Pensava no Liffey desaguando nesse mar. Lore-Ley, poema de Heine, nome das perigosas rochas que tiraram a vida de numerosos marinheiros. O nome, dizem, vem de Lureln, que no dialeto do Reno quer dizer “murmúrio”, e da palavra Celta Ley, “pedra” (rock). O canto murmurado das ninfas, sob as águas, ecoava nas pedras, distraindo os navegadores. Essa talvez seja a música que mais amei na minha vida, penso hiperbólicamente. Algumas semanas depois, vi no Madstock, com os olhos cheios e a garganta salgada, meus ídolos punks velhinhos Phil Chevron, Spider Stacy e Shane MacGowan (com um copo do McDonalds cheio de gim na mão). Só faltou Kirsty McColl, a voz da sereia daquela canção, que morreu no mar de Cozumel em um polêmico acidente com um barco. Em um vídeo postado no YouTube, li a mensagem de alguma mãe para o filho, à respeito da música: “I don`t suppose you would crash your ship for a nice girl in sensible shoes”. (Eu não imagino que você vá afundar o seu barco por uma boa menina em sapatos certinhos”). Amo The Pogues desde a época de Pogue Mahone, do gaélico póg mo thóin (kiss my arse).

Na frente do confortável hotel, no centro da cidade, repousava essa estátua de Phil Lynott, líder do Thin Lizzy! Que tipo de cidade é essa que homenageia um negro, filho de imigrante da américa do sul e mãe irlandesa? É o mesmo lugar que resiste ao domínio britânico desde o século XII. É o mesmo lugar que entrou numa sangrenta guerra civil, entre católicos e protestantes, desde a década de 20, período em que surgiu o IRA, até o final dos anos 90. De um lado do St Stephen`s Green, o parque onde cegos colhem e cheiram as plantas e ervas, encontrei a Newman House: Universidade católica frequentada por James Joyce e Flann O`Brien. Do outro lado, ao longo da Grafton St., visitei a lendária Trinity College, um dia fundada pela Rainha Elizabeth I para “civilizar” Dublin. Andaram nessas pedras e jardins, Jonathan Swift, Oscar Wilde, Samuel Beckett, Bram Stoker, entre muitos outros. Trezentos mil livros estão guardados aqui, entre eles o Livro de Kells, considerado o manuscrito ilustrado mais esplêndido e suntuoso da arte Cristã da Idade Média. Escrito em latim por monges celtas, segundo a crença, com mãos de anjos. O livro guarda a história dos quatro evangelhos do Novo Testamento.

Quando senti frio, comprei a melhor calça de veludo que tenho na Kevin & Howlin Ltd. Sempre que penso em meias de lã, elas estão lá, tão distantes da minha casa em São Paulo, que invariavelmente prefiro não sair. A Irlanda também é dos lugares que não conheci. Não fui até o tradicional Finnegans em Dún Laoghaire. Não fui conhecer o litoral em Dalkey, cenário da história de Flann O`Brien. Nessa praia, o incrível personagem De Selby inventa uma máquina (que infelizmente só funciona embaixo d`água) para envelhecer seu uísque, e controlar o curso do tempo, gerando encontros atemporais como o descrito com Santo Agostinho, numa caverna no fundo do mar. Não fui até a Torre do Martello, na costa da baía, em Sandycove, onde James Joyce viveu por seis dias com seu amigo, o estudante de medicina Oliver Gogarty, e onde Stephen Dedalus vive com Buck Mulligan, no início de Ulysses. Mas andei por cada rua citada neste livro. Fiz uma espécie de Bloomsday íntimo. Não no dia 16 de junho, escolhido por Joyce para a peregrinação de Leopold Bloom, porque este foi o dia em que o autor conheceu Nora Barnacle, o amor de sua vida, numa esquina da Merrion Square, bem na frente da casa da infância de Oscar Wilde. É claro, passei longos minutos olhando essa esquina em silêncio, mais de cem anos depois, como se ouvísse à distância as palavras do casal sendo murmuradas apaixonadamente.

Dali segui para comer um sanduíche de gorgonzola no Davy Byrnes, como Bloom. Esse é só um dos famosos pubs da cidade. Lá é sempre “a lovely day for a Guinness”. No histórico O`Donoghue`s tirei esta, da nota na parede com o nosso nome. Ali perto ficava a livraria, lembra? Na vitrine um exemplar da primeira edição do Ulysses. A mais famosa. Aquela de 1922, azul acinzentado, da Sylvia Beach da Shakespeare & Company. Só mil cópias. Nunca tive esse fetiche. Nunca tive dinheiro pra ter esse fetiche. Tenho muitos, mas livro assinado, não. Mas Dublin é a terra de Beckett, Joyce, Synge, Flann O`Brien, Séan O`Casey, Bernard Shaw, Jonathan Swift, Brian Friel, Seamus Heaney. É a terra de Yeats (“colocaria o mundo a teus pés, mas sou pobre tenho apenas sonhos, quero estendê-los a teus pés, pise com cuidado são meus sonhos”). Dublin é de Oscar Wilde.

Do fundo da livraria, ela me trouxe uma segunda edição do De Profundis. De 1905, azul cinza também, um pouco mais escuro. A primeira edição é de fevereiro de 1905. Essa segunda é de março. Assinado o nome de quem a comprou nessa data. É ainda a versão censurada, editada pelo amigo Robert Ross que doou posteriormente o manuscrito integral para o British Museum com a condição de que só fosse publicado cinquenta anos depois. Voltei para o hotel e li essa edição da dolorida carta de cinquenta mil palavras, de vingança e amor, do homem mais brilhante que já viveu nesse mundo. Quando amanheceu, escrevi um longo e-mail para Marco Nanini: “(…) Estou em Dublin nesse momento, na sombra da Saint Patricks Cathedral (…) não conheço ninguém além de você pra fazer isso. Ontem aconteceu uma coisa incrível (…).

Felipe Hirsch (O Globo)

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
Esta entrada foi publicada em Sem categoria. Adicione o link permanente aos seus favoritos.
Compartilhe Facebook Twitter

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.