
Seus santos e mártires mudaram também. Há algum tempo já não eram mais os bíblicos e sim uma gangue de incendiários heréticos românticos, como ela os chamava. Arthur Rimbaud, certamente, era um deles. Sua espetacular suíte de poemas em versos livres, conhecida como “Les Illuminations”, era o livro místico e simbólico, chave de saída para sua vida na nova cidade. Patti Smith conheceu Rimbaud trabalhando naquela fábrica, rodeada por mulheres sofredoras e analfabetas. “Meu amor não correspondido por ele era tão real como qualquer coisa que eu tenha vivido”.
Trabalhava numa livraria em Nova York quando conheceu o fotógrafo Robert Mapplethorpe e o resto é história. O resto está no delicioso livro autobiográfico “Just Kids”, recentemente lançado. Uma miserável vida cheia de arte e romance. As obsessões eróticas sexuais gays de Mapplethorpe e suas polaroids de corpos nus, masculinos e femininos, esculpidos como estátuas renascentistas. E a poesia-música existencial e tempestiva de Patti Smith e seu primeiro disco, um clássico entre os clássicos: Horses.
Patti Smith, muito antes de Debbie Harry, era a verdadeira musa do CBGB. Foi ela que fez o último show por lá em 15 de outubro de 2006. Tocou metade da noite e acabou o set cantando Elegie, música que encerra Horses e música que ouvi durante dez anos em A Vida é Cheia de Som e Fúria. “I think it`s sad, that our friends can`t be with us today” (Eu acho triste que nossos amigos não possam estar conosco hoje), e naquela noite Patti Smith leu uma lista de artistas, daquela geração, que haviam morrido nos anos anteriores. Fazia isso desde a época de suas performances poéticas na St. Mark`s Church no East Village, ao lado de Sam Shepard, John Cale, Tom Verlaine, Lou Reed. Fez isso, até o período da grande depressão no final dos anos 80, quando Mapplethorpe morreu com Aids.
No início dos anos 90, Michael Stipe e o R.E.M viviam o auge de sua popularidade. Haviam lançado a obra-prima Automatic for the People e assinado um contrato com a Warner Bros. Records de $80 milhões, o maior da história até aquele momento. Ao contrário de todas as expectativas comerciais, num dos maiores casos de sabotagem e terrorismo artístico que conheço, o grupo lançou um dos discos marco da minha vida: o verborrágico e complexo New Adventures in Hi Fi. Nele, o single mais dark que já ouvi: E-bow The Letter. Uma carta-canção escrita às 4 da manhã dentro de um ônibus de tournée. (o disco foi todo composto assim e gravado em quartos de hotéis e sound checks). Do videoclipe da música, cheio de imagens de estradas, cores baixas, horas mágicas, lâmpadas fluorescentes, alumínio e céu, um rosto pelas sombras se insinuava: Patti Smith. A voz de Michael Stipe, inesquecível, repetia: “This fame thing, I don`t get it”. Como Rimbaud, marginal, largou a civilização ocidental cristã, recusou o sucesso e escolheu o fracasso.
Em 2009, em Firenze, fui ao encontro de David na Academia de Belas Artes da cidade. Na galeria, encontrei em torno da escultura de Michelangelo, uma fantástica exibição das fotografias de Robert Mapplethorpe. Nada mais natural. A exposição chamava “Perfezione nella Forma”. Numa das fotos mais lindas, Patti Smith. Como Rimbaud. Pronta para algum garoto de dezesseis anos se apaixonar. Poucos dias depois, ela tocou na Piazza Santa Croce, comemorando os 30 anos de uma lendária performance na cidade. Eu já estava com Insolação, no Festival de Veneza, e não assisti.
Henry Miller disse que existem muitos Rimbauds nesse mundo e que o número aumentará com o tempo. Até que o velho mundo morra de vez, o indíviduo anormal será cada vez mais a norma. Leminski disse que se Rimbaud vivesse hoje seria um músico de rock. Desses, indisciplináveis, drogados, que escrevem obras-primas entre os 15 e 18 anos. Patti Smith disse que sempre amou seu namorado porque ele era experimental, irreverente, espiritual, brilhante e visionário. Um menino que sofreu violência sexual por soldados bêbados da Comuna de Paris, um que chocava a burguesia com suas roupas punks e seu cabelo longo. Um desregrado, em todos os sentidos, que viveu a miséria de Camden Town e Bloomsbury, com haxixe e absinto, ao lado de Verlaine (que atirou no seu pulso numa estação de trem). Um garoto selvagem que se abrigou na sala de leitura do British Museum até escrever sobre sua “Temporada no Inferno” e suas “Iluminações”. O maior de todos, segundo Vinícius de Moraes. Sua vida intensa e poesia, sua eternidade adolescente, continuarão apaixonando meninas católicas, como fazem os mais jovens ídolos do rock.
Felipe Hirsch (O Globo)