1964, o passado já passou?

Acordei bem cedo para ir à Cinelândia, no Centro do Rio. Queria o silêncio e a luz da manhã para gravar sobre 1964. Confesso que, ao ligar a câmera, me veio à cabeça um poema de Mário Quintana: “Quando se vê, já são 6 horas! Quando se vê, já é sexta-feira!”. Quando se vê, passaram 60 anos.

Meus suspiros eram secundários diante do fato histórico e do próprio lugar. Escolhi a Cinelândia, porque estava lá no dia do golpe, mas também porque ouvi tiros vindos do Clube Naval, sabia que a rádio Mayrink Veiga resistia ali perto, e desse lugar partiram também os amigos que foram buscar as armas prometidas, e jamais entregues, pelo Almirante Aragão.

Mais tarde, da Cinelândia, se podia ver a multidão com rosários, marchando com Deus, pela família e propriedade. A sorte estava lançada.

Na Cinelândia aconteceram grandes manifestações da resistência, inclusive a Passeata dos Cem Mil, que levou às ruas artistas como Clarice Lispector, a admirável escritora intimista que não se enquadrava no gênero engajado, tão em moda na época.

As coisas sempre começavam na Candelária e terminavam na Cinelândia, mesmo depois do fim da ditadura. Para abrigar tanta gente, o Comício das Diretas foi na Candelária. Na verdade, esse trecho da Avenida Rio Branco, da Candelária à Cinelândia, foi o palco mais completo de grande parte de nossa História.

Lembro-me daquele período como um tempo marcado pela Guerra Fria. No entanto, com tantas assembleias, debates, manifestações, era um tempo de presença. Sentíamos o cheiro e o calor do outro, daí a grande dor pelos que morreram ao longo dessas décadas.

Hoje, somos imagens luminosas numa tela. Nossa carne e sangue transfiguram-se em bytes; daqui a pouco seremos substituídos por uma réplica que falará como nós. Aquela multidão com rosários disposta a dar ouro pelo bem do Brasil se transformou, foi para a porta dos quartéis, invadiu os prédios dos três Poderes em 8 de janeiro de 2023. Mas as Forças Armadas se recusaram a aderir a uma aventura golpista.

A internet lançou milhões de novos atores na cena política. A agressividade aumentou, brigam as correntes umas contra as outras, brigam contra quem não quer brigar, brigam contra quem briga mais levemente.

Análises políticas mais elaboradas são uma atividade de risco. Apanha-se de todo lado. Mas, felizmente, a descoberta do Brasil, com seus recursos naturais, é uma conquista relativamente nova, dos tempos de crise ecológica.

Não voltamos a 1964, dificilmente voltaremos. Apesar do tom sombrio dos debates, do tsunami de fake news, do crescimento da extrema direita, de governos autoritários ao redor do mundo, da própria hipótese da ruína da democracia americana, da volta do Trump, tudo isso não responde às necessidades de uma época ameaçada pela destruição ambiental e pela desigualdade de renda.

O fato de não voltarmos, creio eu, nos ajuda a lembrar 1964. E isso não tem nada a ver com radicalismo. É possível revisitar uma época e usá-la para avançar o diálogo no presente.

A Guerra Fria acabou, mas os corações, principalmente os fígados, não abandonam o estado bélico. Novos temas entraram em cena para inflamar os ânimos: a imigração no Norte, a violência urbana e corrupção em países do Sul.

Não há nada, no entanto, que não possa ser discutido e resolvido num clima de paz e liberdade. Aliás, esse é o fundamento de nossa política externa, é o traço singular da visão brasileira do mundo.

Precisamos ser o que escrevemos que somos. Nossa habilidade em pacificar conflitos pelo mundo vai por água baixo se não demonstrarmos aqui o que prega a sabedoria mineira: as ideias brigam, as pessoas não.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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