“Inimigos do povo”. Na Casa Branca, ao longo de 20 meses, Trump dirigiu essa acusação aos democratas e à imprensa. Dias atrás, pacotes com explosivos foram endereçados a Obama, Hillary, Soros e à CNN.
“Sem mentiras, sem fake news, sem Folha de S. Paulo. Nós ganharemos esta guerra”. Na Paulista, domingo (21), Bolsonaro declarou sua “guerra” à imprensa. Nas horas seguintes, a jornalista Patrícia Campos Mello tornou-se alvo de uma enxurrada coordenada de ofensas, calúnias e ameaças de morte. A linguagem tem consequências.
Os ensaios de atentados nos EUA originaram-se, tudo indica, de grupos ultranacionalistas de extrema direita. Obviamente, Trump não tem responsabilidade organizacional na operação terrorista. Raul Jungmann avisou que “não existe anonimato na internet”: cabe à polícia descobrir se há relações orgânicas entre os autores das mensagens criminosas a Patrícia e o QG de campanha bolsonarista. Mas Trump e Bolsonaro têm responsabilidade política pelas centelhas de violência. Os dois, de modos similares, violam a sintaxe da democracia.
Os nazistas usavam a palavra “ratos” para se referir aos judeus. Na Ruanda genocida, o regime hutu utilizava “baratas” para os tutsis. “Gusanos” (vermes, larvas) é o termo de escolha do castrismo para insultar dissidentes políticos. Num degrau abaixo, encontram-se “inimigo do povo”, expressão de longa história, cara tanto a Trump como ao PT, e “inimigo da pátria”, preferida por regimes autoritários nacionalistas e pelo bolsonarismo.
A desumanização (“ratos”, “baratas”, “gusanos”) sinaliza uma pulsão exterminista. As outras duas sugerem as alternativas da prisão ou do exílio, embora não excluam a eliminação física.
A sintaxe democrática sustenta-se sobre a crença na pluralidade de opiniões. Sua base implícita é que o “outro”, adversário político, cultiva ideias diferentes das minhas, mas deseja, ultimamente, o mesmo que eu –isto é, o melhor para a sociedade em geral. O debate público admite (exige!) a crítica aguda, a divergência nítida. Mas as democracias começam a se envenenar quando os próprios governantes saltam o muro da linguagem, entrincheirando-se no fosso da “guerra”. Aí, a pedagogia do ódio converte-se em doutrina estatal.
O ódio político não é um componente “natural” das sociedades, mas algo que se aprende. Os mestres mais eficazes do ódio político são as lideranças políticas e, sobretudo, os governantes.
“Nós tivemos de ensinar o povo a odiar os sulistas”, confessou um líder haussá-fulani, da Nigéria setentrional, referindo-se aos iorubas e aos igbos. A virulência nas redes sociais é um fruto do cruzamento entre a antiga pedagogia lulopetista e a mais recente pedagogia bolsonarista. Mas Bolsonaro parece decidido a provar que, perto dele, os petistas não passam de imberbes vestibulandos.
Patrícia escreveu reportagens preciosas no Afeganistão, no Iraque, na Kobane sitiada, na Serra Leoa do ebola. O medo é seu companheiro de viagem. Mas leia apenas uma entre as incontáveis mensagens que ela recebeu das correntes bolsonaristas: “Deveria pensar no seu filho, o futuro do seu filho. Para sua segurança, eu sairia do Brasil”.
Atrás da mais covarde das ameaças descortina-se uma estratégia. Destruir a liberdade de imprensa, sonho dos tiranos, solicita anos de “guerra”. Um atalho eficiente é intimidar jornalistas, que têm uma vida privada, família e filhos.
A linguagem da Paulista não deveria ser interpretada como excesso de campanha, mas como a exposição de um programa.
A seleção de Patrícia como alvo é circunstancial, porém reveladora. O bolsonarismo habituou-se a responder à opinião crítica com uma barragem de ofensas. Não sabe, porém, como reagir à narrativa factual da reportagem, sumo do jornalismo. Bolsonaro mente: seu programa não é eliminar a Folha, mas exterminar os fatos.