Will Eno é o autor que reencontramos no Jardim Botânico, durante esse verão, com a Sutil Companhia. Trabalhamos muito próximos durante os anos de 2003, 2004 e 2005. Durante esse período montamos Temporada de Gripe, Will escreveu Thom Pain e Lady Grey, e desenvolvemos o roteiro de Insolação. Nesse período também começamos o trabalho sobre Viktor Schklovsky, Não Sobre o Amor.
“Estou escrevendo esse e-mail, morrendo de medo dentro de um avião, voltando de Londres e lembro que foi lá que tudo começou. Conversei com você sobre fazer algo baseado em contos russos porque desejava algo delicado, com a sensação de pouca coisa acontecendo, mas de ser tomado no final por uma força de amor intensa. Depois de lermos tantos contos, vocês me mandaram o argumento, eu estava em Londres, como agora quando escrevo para vocês finalmente com o filme pronto. Nessas buscas, conheci o livro Zoo ou Cartas Não Sobre o Amor do Viktor Schklovsky. É a segunda parte de uma trilogia autobiográfica. Nesse livro ele conta sobre seu exilio em Berlim, no bairro russo, na década de 20. O livro mostra a relação epistolar com Elsa Triolet, que habita uma fina linha entre a ficção e a realidade.
Realização de uma metáfora, Alya, a mulher para quem Victor Shklovsky escreveu essas cartas, nunca existiu. Ou melhor, existiu Elsa Triolet que participou, involuntariamente, da obra desse autor. À primeira vista uma história de amor, se transforma no decorrer da obra em outras coisas. A mulher que nega o seu amor é também a impossibilidade de voltar para casa, é a juventude e autoconfiança perdidas, é a distância do que somos autenticamente, é a prioridade de olhar para o futuro quando nostos (a volta para casa) + algos (dor) nos adoece.
Raramente falsificando a memória, quase sempre fazendo uso da realidade, mas não confirmando onde está uma coisa e outra, Shklovsky impôs à sua vida o desespero de uma paixão com o intuito de usá-la no desenvolvimento de sua obra. Soma-se a isso o fato de Elsa Triolet ter sido irmã de Lilia Brik, amante do poeta russo Vladimir Maiakovski. Enquanto as Cartas de Amor a Lilia, assinadas com um enternecedor desenho de cãozinho, transbordam de honestidade (porque Maiakovski nunca pretendeu editá-las), as de Victor, formalista, resultam numa obra literária que, sob a pele do amor, mostra na carne, como tema, as marcas de nossas origens e a herança que recebemos.
Sua idéia é a de contar essa história não sobre o amor, e sim sobre exílios, distância. Em uma observação mais profunda, revê sua tempestuosa paixão, conscientemente, voluntariamente manipulando sua memória, enquanto nós habitamos esse ambiente impossível, irrealizável, da memória manipulada. Ainda assim, essa história é baseada em fatos reais. Petersburgo e Berlim, no início do século. Quando os russos habitavam a região do zoológico na cidade alemã (“Um dia, quem sabe, ela que também gostava de animais, apareça numa alameda do zoológico, sorridente, tal como agora está no retrato sobre a mesa”) e se reconheciam nos bichos exilados de seu habitat natural.
Essa história também é a realização de uma metáfora. É fascinante reconhecer melancolias semelhantes vindas de um lugar tão distante, há tanto tempo. Pensei na idéia dessa peça quando estava transbordando de um amor irreconhecível e de uma forte sensação de perda de raízes, inevitável. Victor Shklovsky também me acompanhou, no último ano, em reflexões sobre a arte. Ele é um dos teóricos mais incríveis que já li. Constantemente influenciado por Laurence Sterne (que também inspirou as Memórias Póstumas de Brás Cubas), é responsável pelo conceito da “desfamiliarização” na literatura. O que podemos discutir como um Ur-Verfremdungseffekt (modelo do efeito de estranhamento, legado de Bertolt Brecht). “É preciso buscar outras formas, não familiares, para mostrar o comum. Porque o processo de percepção deve ser prolongado”.
Como na carta 19 quando, em um prólogo, o autor pede ao leitor para que não leia aquela carta de Alya. A intenção do pedido é sublinhar o tema ali escrito: Um súbito reconhecimento de suas raízes maternas. Da mesma forma acontece quando Alya pede para que o autor não escreva sobre o amor: Tudo e todas as palavras, daquele momento em diante, parece impregnado por esse sentimento.
Esta é uma obra sobre a felicidade distante, como disse Maiakovski, “Dizem que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz”; sobre exílios, como disse Shklovsky, “Um estrangeiro é aquele cujo amor está em outro lugar”; e afinal, apesar do título, sobre o amor.
Sobre nosso filme, há tempos Daniela Thomas me mostrou uma série de imagens de Brasília que me impressionaram muito. Simulação de um futuro, sem memórias. Muito antes de 89, Brasilia já havia crescido diferente da imaginada. Há a Brasília oficial dos monumentos. Há um cinturão de pobreza em volta da cidade, mas entre essas duas coisas, há a Brasília que decidimos filmar. A que vimos na série de imagens desse fotógrafo. Uma Brasília esquecida. Não monumental, falhada, uma arquitetura parada, esparsa, não completada, reutilizada e desigual. Brasília é a manifestação de uma utopia que se perdeu. Como o amor desse filme.
Queríamos filmar a melancolia do amor inalcançável. Como se esse sentimento pudesse se materializar em paisagem, em palavra, em ação e ainda assim ser reconhecível. Insolação é um filme sobre o amor e outras utopias. Não a utopia projetada no futuro. Mas aquela que falhou. Como a dessa cidade solitária. Como a dessas paixões imensas e irrealizáveis.
Bem, amigos, acredito que a esse altura ou eu já estou perdoado ou eu estou condenado pra sempre. Não cometerei mais a burrice de desaparecer. Desaparecer do mundo é difícil. Andei recentemente aí pelo Brooklyn e pensei, tão longe e tão perto”.
Felipe Hirsch (O Globo)