Ali onde, garantiam, outra vez acordava, invisível ainda, a brotação dos antúrios, os quais, na plena madurez do janeiro, chegariam, sobretudo os de turvo e ondulante veludo-de-bispo, chegariam a imitar a textura da pele do ventre de uma menina.
La piel de danzarina, explicavam melhor os índios, porque “danzarina” era como chamavam, em sua língua azoada, aos antúrios nascidos dos charcos, aos antúrios desembestados de amor; nascidos, e de amor desembestados, dos charcos ferventes, salobros; charcos, alardeavam, de extintos vulcões que eles, sempre bêbados, entendiam fossem las dormidas montañas del diablo.
Audível já, falavam, às margens do rio, os prenúncios do certo verão, a irrupção das bolhas de enxofre e húmus feito tachos onde ebulisse a lama pastosa, e movediça, ou como as arrepiantes tinas-de-cobre que o aéreo professor Suarez, em seu nicho-laboratório dos fundos de casa, nunca tirava do fogo. Uma que outra vez, os quintais de Vila Pequena incendiavam.
O verão costumava amanhecer, assim, antes que amanhecesse o dia.
Ninguém nunca foi ver a estroina zoada dos índios inventando que o verão já nascia, ainda que invisível, das alagadiças bordas do rio. Era o brumoso inverno de Vila Pequena, com as chaminés das casinhas-de-madeira evolando a boa fumaça dos fogões à lenha onde aquecíamos as fatias de pão-dormido esfregadas na enregelada banha suína.
Era então a névoa e a constante garoa, o avô desde longe soando as botinas, o chapéu molhado, a puída capa de pano duro, entrando solene e rompante, a reperguntar à avó aonde é que estava a sua garrafada de mastruz, a cachaça curtida nos guizos da jararacambeva.
Guiados por um índio gordo, de nome Yupí, fomos ver o verão que, embora invisível, já fervia às margens do velho Cinza, de antúrios e de amor desembestado fervia, ao regurgito das grandes bolhas de lama e húmus. Mesmo bêbado, o índio disse que sabia aonde, e nunca que ia errar de caminho.
Segundo este Yupí, que embora muito borracho não deixava de falar coisa com coisa dentro, o verão se postava, transparência de brisa e nuvem, na sempre adiada curva do rio, a que sucede a próxima, aquela que vem depois desta outra e assim por diante até chegar ao infinito estio, ainda mais faiscante, e ainda mais definitivo, porque sempre incriado e porque sempre por acontecer e porque sempre por vir com sua orquestração de besouros e gorjeios e o ciciar das cigarras feito uma algaravia de trinos.
Wilson Bueno [06/01/2008]O Estado do Paraná