3.
Tantas ele já tinha feito. Mas ela perdoava. Acreditava na camaradagem. Acreditava. Uma amizade sincera. E ele era um artista. Um homem sensível nem sempre é um homem fraco. Com ela era assim. Não sofria muito pra resolver tesão recolhido por amigo. Já trepava de uma vez e a amizade continuava a fluir sem problemas. Sem o entrave da possibilidade. Ela era um amigo com peitos. Eles faziam confissões das outras. Lembra daquela namorada?! Mesmo depois de gozar muito, enfiava uns trecos lá dentro e ficava urrando. Coisa mais louca. E todos riam. Não. Nem queria ouvir isso. Tinha tristeza. E um humor quente e vivo. Uma energia. Se outros e outras viam isso, por que ele não? Afinal, que porra de amizade era aquela? Ela queria ser comida. Por ele. Pelo amigo. Comida com gentilezas. Comida com afeições. Não simplesmente com esse sexo barato que ele fazia com outras. Amiga de um homem quer o que as outras não terão jamais. O que seria isso, ninguém sabia. Pois não era algo que se dissesse ou pensasse. Mas uma percepção que estava na entrelinha das relações. Os olhos dele eram indiferentes. Havia sim, um amor. De que natureza? Os dois sentavam num café. Os dois andavam pela rua. Um desejo de entender. Interpretar. Muito maior da parte dela. Queria saber daquela substância egoísta que o movia. E as paixões todas que ele vinha contar. Onde nasciam? Qual a fonte? Disponibilizava-se. Rompia acordos de encontros. Só para estar com ele. Importunava-se. Uma dúvida única. Ele não a queria? A intimidade podia até estar lá. Mas era ansiosa. Mentirosa. Sem leveza. Faça-me aqui o resumo de sua vida. Nada a ver com last time i saw Richard. Nada a ver com diamantes em pedaços de vidro. Nada a ver. O silêncio era impossível entre os dois. Pesava nela um sentimento feito líquido que se arrastava nas veias. Espalhava pelo corpo. Olhava pra ele e o líquido ia da garganta pelo corpo todo. Mesmo que sorrisse. Mesmo que ele acendesse o cigarro que ela tinha nas mãos. E parecesse gentil. Era rápida a velocidade com que os dias seguiam. Separaram-se de um modo esquisito. Sem um dizer nada ao outro. Se encontravam espaçadamente. Com uma suspeita da parte de ambos. Não eram mais amigos. Não eram nada. Uma sombra. Até que ele mudou de cidade. E pareceu que estava tudo bem. Falavam-se ao telefone. Com uma força. Uma verdade. Uma decisão boa. Uma crença. Ela desligava e sorria por um tempo. Encostada à parede. Pulso serrado. Fechava os olhos e respirava fundo. O que não foi. O que não vai ser. O que é sempre. Trocavam idéias de música. As confidências todas. Ah, você não toma jeito. E o desenho da voz indo e vindo. De um pra o outro. Um laço. Essas questões todas. Não deu outra. Ele veio à cidade. It´s decision time again. Claro que sim. Lá foi. Novamente. Mesma expectativa. O bar era o que eles iam sempre. Ela estava diferente. Talvez. Ele achou. E ele andava com um cara estranho. Um tipo que ninguém quer por perto. Virando copos e mais copos. Bebe aí, porra! Talvez ela tenha achado engraçado. A música alta. Tinham que falar quase gritando pra se ouvir. Os olhos iam se tornando cheios de intenção. Uma intenção quente e crua. O copo não parava muito na mesa. As mãos grossas do cara. No gesto repetido de encher e encher. Um sorriso maligno demais. Estranho aquilo. E ela olhava pra ele. O cabelo estava um pouco diferente. O ar um pouco cansado. A moça do bar veio avisar que estavam fechando. Ir para onde? Ah, não! Ele não mora muito longe. Você não é afim?! Passamos lá e matamos um! Ah, vamos! Deixa disso! Não é afim? Não. Não era afim. E foram. O banco de trás do carro do tal cara tinha um odor de pêlo e urina de cachorro. Mas ela deitou mesmo assim. Nem viu pra onde estavam indo. O carro parou bruscamente. Vamos sair um pouco! O parque é bonito à noite. Vem pra cá. Os faróis acesos. Parece que tocava Bob Dylan. E eles fumavam e riam desequilibrando-se. Mas não foi só pra acender o cigarro que se aproximaram. Cochichavam. Conversavam. Ela encostou as duas mãos no carro. Botou tudo pra fora. Tudo o que percebeu. Ali naquela cena. E foi o que se deu. Você não está bem, garota. Vem cá. Vem cá que eu te ajudo a ficar bem. A cara destroçada do cara se aproximando. Então era assim que tinha que ser? O corpo investia pesado contra o seu. Sim, era Bob Dylan. A respiração cortava com a dor. A uns três metros dela, o velho amigo de sempre observava. Sem se mover. Fumando muito concentradamente. Havia uma quase ternura em seu olhar. Um olhar sério e antigo. A que ela correspondia. Com todo o amor. Não podia chorar. Nem se livrar daquilo. Era mesmo amor. E como doía.
Assionara Souza

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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