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Acordei em uma cidade portuária estranha, cheia de judeus ortodoxos carregados de diamantes. Nunca pensei passar uma noite na Antuérpia, mas esse era o meu destino. Aproveitei a grana de umas apresentações de Avenida Dropsie no País Basco, para estender meu caminho até as terras Flamencas. Motivo: Alguns dias antes, lera um anúncio que dizia “assista ao show da tournée que foi avaliada com 5 estrelas em mais de 80 críticas”. A volta aos palcos, depois de uma ausência de 15 anos, de Leonard Cohen. Meu sonho! Depois de várias batalhas, só consegui ingressos para um show na Antuérpia. Nada mal, conhecer a Catedral de Nossa Senhora recheada de obras de Rubens e a noite assistir ao show histórico.

Na chegada, uma misteriosa matéria do jornal da cidade anunciava que a região de Flandres tinha a maior taxa de suicídios da Europa Ocidental e reclamava, ranzinzamente, do atraso dos trens de metrô causado pelos desesperados que se atiravam nas linhas. Com muita curiosidade, consegui descobrir que, no dia anterior, a cantora pop belga Yasmine, apresentadora de televisão de um programa musical jovem, havia cometido suicídio com seus 37 anos de idade. A minha idade. Decidiu por esse destino depois de uma dolorosa separação amorosa de sua namorada, Marianne Dupon. A outra paixão da vida de Yasmine? Leonard Cohen. Chegou a gravar um disco estranho, com versões das músicas do ídolo. Um amigo jornalista escrevera uma carta aberta, no dia da minha chegada: “Se Leonard Cohen cantar na Antuérpia Hey, That`s No Way To Say Goodbye, todos pensarão em você”.

Bem, Leonard Cohen não cantou essa música. Estranhamente, foi a única retirada de um setlist, até então, razoavelmente fixo. Não sei o que o levou a fazer isso. Naquela noite ele a substituiu por Chelsea Hotel. Mas o show foi dedicado a Yasmine. Durante a canção So Long Marianne, composta na solar ilha de Hydra, tantos anos antes e por outros motivos, um silêncio profundo fez a poderosa voz barítono do Sr. Cohen ressoar mais melancólicamente naquela noite da Antuérpia. À parte dessa tragédia da cidade, vi um dos shows mais belos e inesquecíveis da minha vida. Três horas, com um pequeno intermezzo. A sabedoria de Leonard Cohen dizendo coisas inesquecíveis: as coisas vão se mover rapidamente em todas as direções, você não será capaz de mensurar mais nada. Em um dos momentos mais emocionantes, Cohen canta o verso Eu nasci com o dom de uma voz de ouro e dez mil pessoas explodem em palmas e gritos. Em outro, hilário, ele fala: “Faz muito tempo que eu estive nessa cidade. Há quinze anos. Eu tinha 60, apenas um garoto com um sonho louco. Desde então eu tomei muito Prozac. Eu também estudei profundamente filosofias e religiões, mas a alegria terminava sempre vencendo”.

Leonard Cohen é uma das mais fascinantes e reverenciadas personalidades da história da música popular. Sua música e poesia buscam incansávelmente explorar limites da mente criativa e espirituais. Judeu do subúrbio de Montreal, Cohen é filho de um vendedor de roupas que morreu quando ele tinha apenas nove anos, mas que o deixou com o costume de vestir ternos, e também de uma mãe Lituana que o encorajou a se dedicar ao estudo da filosofia e da poesia. The Favourite Game de 1963, seu primeiro romance, é a biografia de um jovem que descobre sua identidade através da literatura. Viajando pelo mundo, o jovem Leonard Cohen, se estabeleceu por um período no mar Egeu (Hydra) na Grécia. Lá, compôs grande parte das canções de Songs of Leonard Cohen para a Columbia Records, lançado em 1967. Bastante pessoais e sofisticados, os primeiros albums de Leonard Cohen o transformam numa figura mitológica da música folk.

Sua influência só aumentou com o passar do tempo. Devotos dos seus discos e livros de poesia absorvem com atenção palavras que levam até três anos antes de serem escolhidas pelo autor. Em um dos encontros mais explosivos da história da música, Cohen foi produzido, no disco mais polêmico de sua carreira, pelo genial e recentemente criminoso, Phil Spector. Já na década de 80, Various Positions, experimentava a música eletrônica e recorria mais radicalmente a temas como a espiritualidade e a sexualidade. São desse disco a inesquecível If It Be Your Will e Hallelujah, regravadas com sucesso por Rufus Wainwright e, principalmente, Jeff Buckley. É de 1988 I`m Your Man, talvez um dos meus cinco discos preferidos. Conceitual, com oito faixas cheias de poesia e humor negro. Perfeito. First We Take Manhattan abre o disco. Tower of Song fecha.

Cohen, envolvido com o Budismo desde a década de 70, embarca na segunda metade dos anos 90 em uma nova fase de sua vida. Se torna residente e monge recluso de um retiro Budista, por longos anos. Lá foi batizado com o nome Dharma Jikan, que significa “Silêncio”, e serviu como assistente pessoal do mestre Kyozan Roshi. Quando ressurge, Leonard Cohen processa seu empresário e consultor financeiro por um roubo de mais de cinco milhões de dólares, realizado durante seus anos de retiro espiritual. Há dois anos, Cohen anunciou sua última tournée. Eu teria que assistir, nem que fosse na Antuérpia.

Na volta, no trem escuro rumo a Londres, aquela voz cantando “Dance Me To The End Of Love” não saía da minha cabeça. De relance, vi uma garota da minha idade, sussurrando a letra da música e sorrindo pra mim. Felipe Hirsch (O Globo).

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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