Clovis Rossi – Folha de São Paulo
Ernesto Rafael Guevara de La Serna, o homem, morreu (assassinado) na Bolívia há exatos 50 anos neste 9 de outubro. Mas o “Che”, o revolucionário, morrera antes na Cuba em que estão enterrados seus restos. O “Che” perdeu internamente a batalha de ideias pelo modelo econômico que deveria ser implantado na ilha. Prevaleceu o modelo soviético, imposto pela necessidade de preservar o financiamento que a União Soviética concedia a Cuba.
Escreve, por exemplo, para “El País” o historiador cubano Rafael Rojas:
“Quando Fidel Castro leu a carta de despedida do Che, no ato de constituição do Comitê Central do Partido Comunista de Cuba, em outubro de 1965, ficou evidente que o guevarismo não teria futuro na ilha. As naves haviam sido queimadas e o Congo e a Bolívia foram tentativas de provar que outra revolução, como a cubana, podia triunfar em qualquer nação do Terceiro Mundo”.
Na minha primeira visita a Cuba, em 1977, quando a ilha ainda era proibida para brasileiros, tivera idêntica sensação de que o “Che” já não cabia por lá. Escrevi, para o “Estadão”, onde então trabalhava, um texto em que relatava a introdução completa do modelo soviético, a que o Che se opunha, e dizia em seguida:
“Não é de estranhar, portanto, que a figura de Che Guevara seja alvo, hoje, de uma curiosa dicotomia: de um lado, exalta-se e idolatra-se a o Che revolucionário internacional, o homem que lutou no Congo e na Bolívia, o guerrilheiro infatigável. De outro, atira-se ao limbo o Che teórico, o defensor do Homem Novo, o idealista”.
Acrescentava no texto de 40 anos atrás: “Sintomaticamente, até as revistas que serviram de veículo para a propagação das teses guevaristas –Cuba Socialista, Nuestra Indústria e Comércio Exterior– foram paulatinamente extintas”.
Isolado em Cuba, o Che acabou morrendo na Bolívia, igualmente isolado.
O coronel boliviano Gary Prado, que comandou as tropas que capturaram Guevara no dia 8 de outubro de 1967, contou em entrevista para o jornal “El Deber” que a guerrilha que o Che liderava estava reduzida a 17 homens quando o batalhão Manchego, de Prado, entrou na zona de operações.
O revolucionário foi traído, cruel ironia, exatamente pelos camponeses que pretendia libertar de suas infames condições de vida, sempre segundo o depoimento do coronel Gary Prado:
“Recebemos informação de camponeses que haviam visto guerrilheiros na quebrada de El Churo. Montei a operação, cercamos a quebrada e se produziu o combate”.
Pouco depois, prossegue o relato, o coronel encontrou com dois dos guerrilheiros restantes e um deles lhe disse: “Não me matem, sou o Che Guevara, para vocês valho mais vivo que morto”.
Foi assassinado no dia seguinte.
O coronel boliviano faz um julgamento impiedoso do Che: “Dava pena. Era o fracasso de toda a sua vida, de sua série de fracassos porque não havia tido muito êxito em nenhuma das tarefas que havia empreendido em toda a sua vida”.
De fato, a revolução que ajudara a triunfar em Cuba deslizou mais e mais para uma burocracia tão sufocante que até seus líderes tratam, agora, de desconstruir, penosa e lentamente, sem abdicar da ditadura que o Che também apoiara.
O homem novo, que ele pretendia construir na África e na América Latina, não nasceu; ao contrário, está cada vez mais apegado a valores materiais, quando seu comandante, Fidel Castro, dizia que “o homem não vive somente de dinheiro. Os trabalhadores devem aprender que seu trabalho é uma contribuição de que o povo inteiro e o Estado tiram proveito” (entrevista de Fidel ao jornalista americano Herbert Mathews, em fins de 1967).
Nem os trabalhadores nem os camponeses aprenderam. Não é à toa, pois, que, 50 anos depois de sua morte, o Che seja apenas um objeto do consumoque ele desprezava, estampado em camisetas.