Passei 20 anos em Curitiba. Morei meus dez primeiros no Rio. Moro há dez em São Paulo, ao redor da Avenida Paulista e da Rua Augusta. Aqueles 20 anos são as décadas de 80 e 90. Décadas muito inspiradas pelo avanço urbanístico da política de Jaime Lerner e pelo vulcão poético de Paulo Leminski. Tantos seguidores, escritores, ilustradores, jornais literários, na verdade, desde Joaquim, de Dalton, na década de 50. Antes da primeira prefeitura de Lerner, Curitiba tinha 1 metro quadrado de área verde por pessoa. Depois da terceira, 55 metros. É claro, essa cidade não existe mais. Curitiba hoje é dos verdadeiros marginais (considerando que nos considerávamos marginais), esses, lindamente descritos pelos contos de Dalton Trevisan. É uma cidade como outra qualquer com mais de 3 milhões de habitantes. 80% dos homicídios em Curitiba se relacionam com o vício do crack.
Eu tinha 13 anos e no mesmo teatro onde fiz minha primeira estreia tocava uma banda punk, a meia noite, num show chamado “Êxtase sob Dureza”. Fui assistir e, como disse Francis Bacon, todo artista tem o momento da revelação de seu tema eterno, de sua obsessão. O dele foi clarificado num passeio com sua mãe pelo açougue da Harrods em Londres, com todas aquelas carnes penduradas. O meu, bem mais humilde, mas não menos apaixonante, aconteceu naquela noite. Conheci o BAAF (Beijo AA Força, nome do alicate de tortura que os nazistas usavam na língua dos poloneses), conheci a poesia de Marcos Prado e a de Sergio Viralobos, conheci uma turma mais velha que, discretamente, segui e pela qual fui iniciado em Gregório de Matos, Maiakovski, Baudelaire, Bashô, John Fante, Yeats, Noel Rosa, Lupiscínio Rodrigues, o punk e o pós punk, e todo um universo repleto de estrelas brilhantes que viverão sempre, desde aqueles dias, em mim. Devo meu humor e meu amor pela vida a esses caras. Troco fácil tudo o que fiz por ouvi-los mais uma vez. Até porque, o que fiz, faço pra explicar o que vi naqueles dias.
Vi recentemente a matéria do filme sobre a Turma da Colina de Brasília. Me reconheço. Gostaria de ter feito algo sobre eles também. Foram nessas cidades que o punk desembarcou no Brasil. Em Brasília, com os filhos de diplomatas antenados, principalmente, nos 77`s Londrinos. Em Curitiba, com os filhos de imigrantes bêbados (polacos, ucranianos e alemães, quase todos de origem católica). Fiquei perplexamente emocionado quando, filmando Insolação, li a frase de Renato: “Quando se aprende a amar, o mundo passa a ser seu”, na parede de um escritório do Hospital Militar de Brasília. Foram os militares que invadiram a UNB em 68. Era deles que o garoto fugia para fumar maconha na Colina. Eu amava o Rio de Cazuza e Lobão também, mas já andava longe da elegância despretensiosa dos cariocas. Nem eramos ativistas da periferia de São Paulo. Éramos pretensiosamente geniosos e genialmente farsantes. Paulo Leminski não dominava as diversas línguas mortas e vivas que alardeava falar. Mas se apropriava de cada uma delas com seu modo brilhante de reinventá-las
Em 80, Leminski prefaciou uma nova geração de poetas num livro desenhado por seu maior parceiro, o Solda. Neste, aparecia a poesia de Marcos, já cantada por Rodrigão, Ferreira e seu bando na Contrabanda Enterprise Corporation & Limitadas Companhias. Logo se transformaram na Companhia de Energia Elétrica Beijo AA Força. Ana Maria Bahiana adjetivou a turma como “verdadeiras esponjas culturais”. A parceria era grande, a sede alcoólica infinita, e as tertúlias cruzavam as noites frias da cidade. Podem dizer, orgulhosos, que sobreviveram e ultrapassaram as baixas perspectivas sobradas aos artistas independentes desse país, com galhardia e extremismo poético. Não concederam sua preciosidade aos modismos que assolam o mercado cultural.
Em 2006, pude retribuir, com o mínimo, o que me foi dado, organizando o livro coletânea Ultralyrics com um pouco da obra de Marcos Prado e seus parceiros. Agora, nos 18 anos da Sutil Companhia, no Sesc Belenzinho, realizamos o encontro histórico entre o BAAF e o Defalla, que não tocam juntos desde aquele tempo. O último show oficial do BAAF acabou em briga, afinal, como eles mesmo dizem, estávamos em Curitiba, e nessa cidade nem mesmo a mesma turma se entende muito bem.
Viciados e alcoólatras incontroláveis, mentindo para si mesmo, para agradar as pessoas que os amavam, alguns fugiram do descanso da morte e entraram no pânico do inferno. Solda, por exemplo, conta que dormia de 45 minutos em 45 minutos, com um comprimido de diazepan por período de sono. Marcos, internado no Hospital Psiquiático do Bom Retiro, usava o seu chapéu para disfarçar sua psoríase. Quando ouvi a notícia da morte de Leminski eu tinha 17 anos e só havia sentado duas vezes, calado, na mesma mesa do polaco, gênio intragável. Quando recebi a notícia da morte de Marcos, era dia 31 de dezembro de 96 e eu podia ouvir os fogos de artifício no céu. E assim se foram muitos, Jamil Snege, Wilson Bueno, Raul Cruz.
Roberto Prado, poeta, irmão de Marcos, conta que ele morreu com o projeto de escrever um livro chamado Ultralíricos (aliás ele escreveu Pérolas aos Poucos, há 25 anos). A idéia do livro era fazer Casimiro de Abreu parecer um racionalista alemão. Beko diz que o irmão sempre tirou a poesia pra dançar. Sempre próximo do extremo. Sempre em direção à fronteira. Amou perdidamente a música e para ela viveu fiel até a morte. Sua voz é o BAAF. Nosso oriente é Paulo Leminski.
Se viro a capa de Tonight`s The Night de Neil Young, leio: “Me desculpe, você não conhece essas pessoas. Isso não significa nada para você”.
Felipe Hirsch (O Globo)
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