David Markson morreu dia 04 de junho deste ano. Estou preparando uma instalação sobre sua obra. Era uma espécie de Homem-Livro, foragido do último capítulo do distópico Fahrenheit 451 de Ray Bradbury (uma das minhas obsessões). Mas diferente do homem que, por exemplo, carrega pela vida a obra de Platão, Markson se dedicou à descontinuidade, à colagem, ao sampler, à aglutinação, às formas breves, provas e amostras. Costumava manter suas anotações em cartões dentro de caixas de sapato. Usava cola, fita crepe e tesoura para isso. Abaixo anotações sobre anotações de David Markson.
William Butler Yeats, já com 27 anos, não tinha beijado uma mulher ainda. Recentemente li a autobiografia de Yeats. Conheci Yeats com Marcos Prado, um dos meus guias, que morreu numa noite de ano novo aos míseros 36 anos de idade.
Aos sete anos, Freud urinou no chão do quarto de seus pais. Me disseram que W. H. Auden, repugnantemente, fazia na pia. A última obra de Alan Bennett chama O Hábito da Arte e conta o encontro fictício de Auden e Britten, enquanto o último criava a música de “Morte em Veneza” Britten e Visconti criaram filme e ópera mais ou menos simultâneamente. E um, não queria saber do desenvolvimento do trabalho do outro.
Existe a lenda de que, nove meses depois de sua morte, Dante apareceu para um de seus filhos, em um sonho, e disse onde encontrar os últimos 13 cantos, desconhecidos, do Paraíso. Adentrei a silenciosa e pequenina Santa Margherita em Firenze, como se pudesse testemunhar o encontro com Beatriz Portinari descrito em Vida Nova. “Desde o meu nascimento, nove vezes o céu de luz havia retornado ao mesmo ponto, em seu giro, quando aos meus olhos surgiu, pela primeira vez, Beatriz (…)”. Na mesma cidade persegui os passos de Michelangelo e Da Vinci. Dissecadores de cadáveres na Florença renascentista.
Raskolnikov tem 23 anos, para sempre. Li Crime e Castigo com 17, para sempre. De Dostoievski além de tudo, gosto de Uma Doce Criatura, novela curta e delicada, escrita em 1876, no poente da vida do autor.
Molly Bloom tem 33 e pensa sobre o tamanho e a potência do pênis de seu amante e do seu marido. Leopold Bloom concentra seus esforços e o fluxo de sua consciência enquanto defeca ou masturba-se pensando em Gertie. Joyce, por sua vez, “o pensamento do pensamento” chamou de Música de Câmara seu livro de poemas, baseado no som de sua urina em um penico.
Huckleberry Finn sempre terá 13 anos. Acabo de receber o primeiro volume! (760 páginas), lançamento da autobiografia do incrível Mark Twain. Não vejo a hora de dedicar meu verão a este livro. Minha preferida é “Meu Amor Platônico”: as anotações dos sonhos recorrentes, de Twain, com uma menina, ao longo de sua vida. Ela sempre com 15 anos. Ele envelhecendo. A história é baseada no amor do escritor por Laura, garota que conheceu numa viagem ao longo do rio Mississippi. O polêmico Huckleberry Finn tem sido alvo de críticas, como dizia Noel Coward “grandiosas”, sobre a utilização na linguagem de estereótipos raciais (lembra algo?). Sobre o assunto, sempre gosto de lembrar do discurso de Ray Bradbury: “Há mais de um jeito de queimar um livro. E o mundo está cheio de pessoas por aí com caixas de fósforos. Cada minoria acha que tem o direito ou o dever de dosar o querosene e acender o fogo. Começam rasgando uma página ou duas, depois disso, quando os livros estiverem esquecidos, as cabeças fechadas, e a sociedade, numa suposta procura por justiça, suprimir a literatura num ato de auto-censura e esvaziamento, nesse momento o governo saberá tirar vantagem disso”.
Com essas anotações, minha cabeça roda com tantas idéias em corrente. Queimar livros me leva a Babel Platz e então me lembro de Fome, um dos meus livros preferidos, de Knut Hamsun, sim, o nazista arrependido que teve Hitler como a figura de seu pai por um tempo,
mas que foi capaz de traçar o livro mais fiel e amargo sobre o destino de um artista, ou de nós artistas, que já li. Só Antunes Filho poderia fazer isso.
Lendo os “cartões” de Markson soube que Le Bateau de Matisse foi pendurado de cabeça para baixo no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque e que ninguém notou. Soube que Billie Holiday cantou com Artie Shaw em um Hotel em 1938, e que não foi permitida a cruzar o restaurante do lugar mas só entrar e sair no palco, através da cozinha. Soube que há uma forte possibilidade de existir um manuscrito inédito de Isaac Babel nos arquivos do governo de Stalin. Um livro confiscado das mãos do autor quando ele foi executado, numa cela de prisão em Moscou. Soube que Chopin era chamado de porco judeu e me lembrei, nessa corrente, que Oscar Wilde disse que depois de ouvir Chopin, sentia-se como se tivesse chorado sobre os pecados que nunca havia cometido e lutado pelas tragédias que não foram as dele. Soube que Whistler, aquele que me fez chorar por ver a série de pinturas da região do Battersea, disse que Velázquez é o pintor dos pintores. E isso me levou às Meninas do Prado e às Pinturas Negras retiradas do reboco dos muros da casa de Goya. Soube que Modigliani, sem nenhum tostão, como o Artista do livro Fome, como nós artistas, pintava três quadros por dia, mas só na sua cabeça. Por que estragaria uma tela se ninguém compraria ou realmente daria valor? Preferia ficar sentado, sob a chuva fina, no Jardim de Luxemburgo, recitando Verlaine para Anna.
Ser casado com um artista é uma vida muito dura, disse Nora Joyce.
Por fim, soube como Shakespeare começou sua carreira em Londres: guardando cavalos do lado de fora do teatro.
Felipe Hirsch (O Globo)