Palavras perseguidas

Meninos, eu ouvi.

Em épocas intragáveis e lugares retrógrados, quando o desmando mandava, certos sons estavam impedidos de soar ao sol da pátria naquele instante. Eram tempos de ordem unida e ordens do dia, em que uma simples palavra podia ser uma desordem. Aí virava um grito parado no ar.

Nesses tempos de gemidos e sussurros, até o zunzum era proibido zoar, quanto mais o zunzunzum. Alarido, nem pensar, pois pensar já causava alarde. Naqueles idos doloridos, as pessoas calavam pelos cotovelos.

Assim, enquanto uma única voz imperava, sombrio se tornou o vocabulário e ficou turva a oralidade, além de erma a expressão escrita. Armados de desconfiança e apreensão, os imperativos dominaram tudo o que era dito. Discursos, pronunciamentos, declarações, manifestos, tudo que era voz ativa passou pra passiva.

Mas como não há prisão em que caiba inteiro o vozerio de uma nação ou grades suficientes para a exclamação de um povo, muitas palavras escaparam e, na clandestinidade, fizeram a resistência. Guerrilheiras, se disfarçavam de poemas, se ocultavam em meio a crônicas, emboscadas em artigos e até camufladas em receitas.

Um levante surdo para as vozes que se esgueiravam sem poder se erguer. Até o silêncio, tão quieto, se punha eloqüente.

Então surgiu um trio de palavras que passou a liderar a reação boca afora. Era formado por três substantivos abstratos, todos do gênero feminino, dois polissílabos e um monossílabo: Liberdade, Democracia e Paz. Havia outras, sonoras, mas aquelas, mesmo de longe, jamais seriam inaudíveis, mesmo em baixos decibéis.

Soletradas com paixão, motivavam multidões como só elas, dada a potência dos seus significados.

Fáceis de emitir, lindas de ouvir, estavam em toda a parte ao mesmo tempo, arrebatando tímpanos. Unidas, viraram clamor nacional. Por causa delas foi decretada a caça às palavras. Para serem abatidas a tiros junto com quem as proferisse; para serem cortadas como o mal pela raiz, na altura das cordas vocais; para sufocá-las com um nó na garganta; ou dilaceradas nas superfícies impressas.

Foram anos de chumbo a nublar a linguagem. Questão de tempo. Eram tantas as palavras – livres demais, democráticas demais, pacíficas demais – para serem controladas que a voz de comando engoliu em seco a sua prepotência. Logo, no céu, o verde-oliva deu lugar ao anil e o palavreado voltou a fazer piquenique sob raios fúlgidos.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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