E se a falsa cultura for verdadeira?

Dona Marionitta de Andréas Gouvêa, conhecida como Ninita, dedicou dois dias a um levantamento de suas convicções culturais mais profundas. Tudo anotado numa folha de caderno, chamou um jornalista conhecido e lascou uma entrevista recheada de opiniões definitivas.

Por exemplo: acha Jô Soares o homem mais inteligente do Brasil. Um grande entrevistador, uma demonstração permanente de erudição, mal sobrando tempo para o entrevistado falar. Aliás, nem precisaria do entrevistado. Não li os livros dele, mas sei que é um grande escritor. Já deveria ter sido eleito para a Academia Brasileira de Letras, exalta-se. Injustiça. Consola-se pensando que pelo menos o Paulo Coelho, outro gênio, está lá.

No quadro dos humoristas, dona Ninita gosta muito de Tom Cavalcante, engraçadíssimo. Como faz caretas! diz ela, chorando de tanto rir. Eles mostram que o Brasil é o país mais divertido do mundo, além de ser abençoado por Deus e bonito por natureza, como dizia o samba do Caymmi… ou seria do Vinícius?… Ou do…? Neste ponto, dona Ninita ficou ligeiramente confusa e se desculpou dizendo que desde que concluíra a faculdade não fazia tamanho esforço intelectual para falar sobre a cultura brasileira. Perdão.

E arrematou:

Vinícius ou Caymmi, pouco importa, o Brasil é mesmo o melhor país do mundo. Aqueles europeus, aquela cultura antiga, velha, cansada, aquela gente fria e distante. No Brasil, diz ela, é que a gente sente o verdadeiro contato humano.

Já na área social, dona Ninita e seu marido, J.P.G de Andréas Gouvêa, que aplica no mercado financeiro, concordam que novas oportunidades se abrem para os brasileiros. Mesmo o Lula, em quem ela não depositava a menor confiança, acabou ajudando os negócios. Também, assessorado pelo Meirelles, diz Ninita, até um operário pode dirigir o Brasil. É o país do jeitinho, arremata.

Admite que a vida está difícil, o próprio J.P.G. precisou se desfazer de uma de suas lanchas. Que fazer? Faz parte. E revela sua polêmica opinião sobre o desemprego. Há tanta gente precisando de um jardineiro, uma empregada doméstica… como é que não arrumam emprego? Acho que é falta de empenho. E dispara um argumento definitivo:

— Eu, caso precisasse de emprego, arrumaria num minuto. Era só dar uns dois ou três telefonemas para estes meus amigos da política.

A saída, segundo ela, são as exportações. Por que não exportam ao invés de pedir esmolas ou assaltar? Exportar é o que importa. E completa, de forma didática: nós exportamos e os outros importam.
Uma coisa conduz e completa a outra. Simples.

Mas é na área das artes e da cultura que o casal se delicia. Gostam de amenidades e J.P.G. costuma lembrar a frase de Coelho Neto (lida numa revista médica, num consultório): “A literatura é o sorriso da sociedade”. Que lindo! Cultura é uma delícia, concordam os dois. Leram diversos livros de auto-ajuda e ficaram surpresos com o nível dos escritores brasileiros. Pensavam que era coisa só de europeus, como aquele Hemingway – que, aliás, morou na República Dominicana com Gaughin, não foi? Ou foi o Van Gogh? Foi em Cuba? Bom, depois a gente vê no Google. Mas só no Brasil um escritor como Sarney poderia ser presidente.
Um presidente escritor, que beleza!

O casal tem outro ponto em comum com Lula: Zéca Pagodinho é um monstro! exalta-se ela. Um Mozart dos subúrbios, já que Mozart, sendo alemão, também gostava de cerveja. Era austríaco? Ah, é a mesma coisa.

Quanto aos clássicos da literatura, o casal elege José de Alencar como símbolo. Não leram nenhum livro dele, mas viram na televisão. Só ele poderia escrever A escrava Isaura, dizem, em uníssono. Arquiteto, é claro, é Niemeyer, autor do plano piloto de Brasília, um primor. Cantoras, a Ivete Sangalo – seu J.P.G. revira os olhinhos – e Simone. Já a música erudita é uma terapia –
eu durmo feito anjo, diz dona Ninita.

Neste ponto, a entrevista foi interrompida abrupamente, pois ela e o marido estavam ansiosos para ver na televisão a novela das oito.

— Cultura de massa, disse ela, empurrando o repórter porta afora. Todo mundo vê, todo mundo participa. É o Brasil!

Roberto Gomes – Gazeta do Povo.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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