Você está certa. Vistas daqui, da janela deste quarto de hospital, as pessoas lá embaixo parecem bonecos de neve. Vagas estrelas sem brilho, você comparou certa vez – personagens de uma abstração sobre o silêncio e a incomunicabilidade. E Nova Iorque lembra de fato um bolo de açúcar. Acorde, meu bem. É 25 de dezembro de 2002, seu aniversário. Uma amiga veio visitá-la. Hoje fazendo 36 anos, você é a menina de tranças que está na porta. Antes de partir para o Grande Mistério, você estará frente a frente com você.
Não se trata de acerto de contas, a sensação é de conforto, a serena celebração de uma conversa há muito tempo agendada, por isto você está apaziguada, mais doce do que jamais esteve. Tomando-lhe as mãos, a garota tira você da cama. E de repente esta U.T.I. sinistra onde você espera pelos anjos que virão buscá-la transforma-se um parque de diversões. Vocês escolhem a roda-gigante. Tempo e espaço começam a perder sentido. Daqui a pouco você estará perdendo também a consciência, a infância e a inocência. Ingressará na mocidade. Descobrirá o amor, ficará corada, morderá os lábios – gemerá em êxtase.
Atônita, a máquina do tempo retroagirá ao Big Bang. Há cores e luzes, como numa gigantesca paleta. É a fertilização. Seres inéditos aparecerão. Elfos, minotauros, querubins. Miles Davis tocará “Kind of Blue”. Ute Lemper será a voz em fundo. Sim, o Paraíso. Os sons e a fúria do seu primeiro vagido explodirão nas fronteiras do universo e – olha o medo – você desejará ver tudo começando de novo. Voltará à infância, o refúgio predileto. Então tateará. E, medrosa, se sentirá protegida. Numa fração de segundos, a roda-gigante irá misturar seu crescimento, maturidade, fracassos e alegrias. Adeuses e regressos. Amores, desamores, obsessões. Tintas, partituras, aromas. A história da sua vida.
E você se sentirá só. Chorará, porque descobrirá que esteve sempre só. Mas rapidamente irá por universos paralelos e encontrará personagens dos seus delírios – famas; cronópios; faunos. E, ainda uma vez, voltará a se esconder na inocência. Voltará tantas vezes que, cansada, e maravilhada, dará um longo, reconfortante suspiro. A menina em seu quarto a ajudará então a fazer a descoberta mais importante do seu passeio pelo tempo. A de que você terá sempre, sempre, 14 anos.