Do baú

Até tu Leminski! Para especialistas, nem o poeta
mais famoso do Paraná escapou do mapa
genético simbolista.

O ano era 1982. A pesquisadora Cassiana Lícia de Lacerda acabara de publicar Obras Reunidas de Emílio de Menezes – um trabalho de fôlego o bastante para resgatar a figura do poeta, jornalista e sátiro curitibano que se fez dos intelectuais mais populares do Rio de Janeiro da belle époque. Da terra natal, ele tinha levado uma de suas referências confessas, o simbolismo – uma escola literária sofisticada, exótica e marginal à qual fazia jus. Basta saber que, quando daqui se foi, em 1906, a gente da capital já tinha se escandalizado com os dizeres e os vestires do jovem magricela conhecido como dr. Mosquito.
No Distrito Federal, onde ganhou fama e peso na mesma proporção, sua notoriedade não seria menor. Amargou, por exemplo, encrencas com Machado de Assis, que não o queria na Academia Brasileira de Letras. Tinha língua ferina. E usou da imprensa para fazer chistes e para atrair raios e trovoadas, uma de suas especialidades. Cassiana, autora da tese de doutorado Decadismo e Simbolismo no Brasil (USP, 1981), se tornou uma expert não só em Emílio, mas em Emiliano Perneta, Dario Vellozo, Silveira Neto, Rocha Pombo e qualquer nome que tenha pelo menos passado perto do movimento. Não sabia, porém, que um dos mais ilustres paranaenses teria deitado raízes na vida e na obra de ninguém menos do que Carlos Drummond de Andrade – o mais festejado de toda a poesia brasileira. “Ele me disse ter sido influenciado pelo senso de humor de Emílio, lembra a professora, de posse de uma preciosa carta recebida do poeta por ocasião do lançamento de Obras Reunidas…
Em busca do mapa genético da poesia feita no Paraná, o depoimento do escritor mineiro funciona como um achado. Da mesma maneira que Drummond não passou impunemente pelas palavras de Menezes publicadas na imprensa carioca, o estado em que nasceu jamais se curou do impacto criativo e performático dos adeptos do simbolismo. “Foi uma geração fora de série, que encontrou no Paraná um terreno fértil. Esse sucesso também se deve a João Itiberê da Cunha, que viveu na Bélgica e volta para cá no final do século 19, fazendo circular na cidade livros simbolistas”, explica o professor do Departamento de Letras da UFPR, Edison José da Costa, sobre a escola que teve uma expansão restrita no país, mas que produziu expressões como Emílio, um marco como o catarinense Cruz e Sousa, e príncipes coroados, feito Emiliano Perneta.
Foram famosas as diversas revistas do período. E é arriscado contabilizar o lugar que ocupam no imaginário das gerações futuras. Tanto que dele não se desprendeu uma Helena Kolody. Nem o agitador cultural Paulo Leminski, espécie de herdeiro histórico do recado deixado pelos freqüentadores do Templo das Musas, na Vila Isabel. As heranças podem ser listadas assim. Os simbolistas estabeleceram uma relação muito particular com a palavra. É próprio deles o burilamento do verso até não poder mais. O miniaturismo. A concisão. O perfeccionismo. A experimentação. A profusão de imagens em cada poema. O personalismo. Eram não por menos também dândis – homens extravagantes o bastante para botar a sociedade da época em estado de alerta, de desconfiança e de admiração, quase sempre na mesma medida. Para Cassiana Lacerda, muitas dessas características podem ser identificadas nas levas literárias seguintes à das primeiras décadas do século 20.
Ela cita os versos mínimos de Kolody. A síntese obsessiva e trabalhosa dos textos de Dalton, mesmo sendo ele o mais importante representante do modernismo local e representante da reação ao o que os dândis representavam. E recorda a pesquisadora, pasmem, de ter visto Paulo Leminski muito à vontade num impecável terno de linho branco, que lhe caía bem, por sinal. “Ser dândi não está na roupa, é claro, mas na atitude extravagante, no ir contra a maré. Para mim, o Leminski era mais capricho do que relaxo; mais samurai do que bandido que falava latim, como quis o Toninho Vaz na biografia que escreveu”, alfineta.
Lacerda lembra que numa outra ocasião encontrou o poeta na rua e de ele ter dito que faria versos metrificados. Que tinha muita gente fazendo bobagem na poesia livre. Seria uma recaída simbolista? Mais do que isso. Para tratar da ligação de Paulo com os literatos do início do século 20, a professora responde citando a pequena obra poética Paideuma & Celebração do Poeta Leminski, assinada por Haroldo de Campos, publicada no selo Buquinista, da Feira do Poeta: “No templo neopitagórico / a mão do homem / paciente / recupera os salvados do incêndio / que devorou a Encyclopédie / e o retrato (togado) de Dario Vellozo / aliás Apolônio de Tyana (…) nos degraus iniciáticos / sentado / o fileleno Leminski / sob o emblema brônzeo do frontspício / paquera as Musas (…). Na próxima semana, não por menos, Cassiana fala do dandismo local e do simbolismo à Leminski na Feira do Livro de Porto Alegre, evento que tem o Paraná como estado homenageado deste ano.
Biologia

O escritor, poeta bissexto e crítico literário Miguel Sanches Neto identifica três traços “biológicos” na poesia feita no Paraná – o lirismo de Helena Kolody; a concisão e a sacada da poesia pautada pela publicidade, tal como a faz Solda ou Thadeu Wojciechowski; a tendência barroca, comum à última fase de Leminski, e que encontra eco na produção de Rodrigo Garcia Lopes e Josely Vianna Baptista, por exemplo. Por acréscimo, Sanches se afina com Cassiana Lacerda ao enxergar uma conexão de primeiro grau entre os simbolistas e o poeta a quem considera a única grande influência paranaense no gênero. “O Paulo freqüentou o templo neopitagórico, tinha preocupações com a linguagem e com a alta cultura, com os modos e com o mundo, distanciando-se das questões mais pedestres e rasteiras que tinham marcado o modernismo”, comenta, referindo-se à escola que chegou tardiamente ao Paraná e teve sua expressão maior na prosa, não no verso, com exceção de Brasil Pinheiro Machado e suas seis poesias modernas.
Leminskiano até a medula, o londrinense Rodrigo Garcia Lopes, autor de Solarium, Visibilia e do livro sonoro Polivox, vê, como não, no simbolismo a herança mais evidente da poesia do estado, que traz no sangue o sentido de etéreo, o amor ao que é vago e inefável, o indizível, o transcendente. Além do gosto pela musicalidade, e a necessidade de se expressar através de revistas literárias. Para o tempo em que havia a Pallium, O Cenáculo ou Azul, entre tantas, há correlatas como a Joaquim, a Raposa, o jornal Nicolau, ou mesmo a Coiote, da qual Lopes prepara a segunda edição. “Embora Londrina seja uma cidade que já nasce modernista, temos em comum com o simbolismo a ligação entre a poesia e a música, o que aqueles poetas souberam fazer muito bem. Rimbaud e Verlaine tentavam imitar nos versos a melodia de Wagner, faziam frases em que havia a evocação da música das palavras”, diz o poeta do local que viu passar por seu cenário cultural gente como Arrigo Barnabé, Cida Moreira, Robson Borba, Ademir Assunção e Itamar Assumpção. Um laboratório de biotecnologia assinaria embaixo.
José Carlos Fernandes/Gazeta do Povo.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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