– Quantos anos a senhora tem? De onde a senhora vem?
– Tenho idade para ser tataravó do bisavô da sua vó, mas renego qualquer parentesco com a laia que habita este paisinho. Sou natural de Nenhures, que fica entre Algures do Norte e Alhures do Sul. Sou filha do seu Respeito e de dona Moral, já falecidos.
– Fale um pouco da sua formação.
– Todos pensam que estudei ética, o que é uma ofensa ao meu autodidatismo – eu sempre ensinei ética. O povo já foi muito receptivo a ela, dava gosto ver as reações públicas.
– E atualmente?
– Bem, sou muito disponível, estou sempre atenta se precisam de mim. Corro a atender mas me frustro: são apenas irritações comezinhas, discussões em balcões, choques conjugais. Já não há causas nobres como antigamente.
– Em se tratando do comportamento social, o que mais a incomoda ao circular por aí?
– Duas coisas: quando fingem que não existo e quando me confundem com a Raiva. Além de não ser do meu nível, copiou minha agenda e atua em todos os setores. Logo ela, uma inútil que dispersa energia e é adepta de baixarias. O povo não vive sem ela.
– Como a senhora vive hoje, qual sua rotina diária?
– Ah, sou simples como qualquer pessoa. Como nunca me aposentarei (seria indigno depender de você sabe quem), levanto cedo, faço ginástica, rego as plantas e leio os jornais com a ajuda de um termômetro.
– Como?!
– Você já viu que imprensa morna? Quando encontro algo quente, aí eu leio. É raro.
– A senhora ainda se diverte de vez em quando?
– Sim, claro, toda vez que releio as leis vigentes no Brasil, que não vigem. Rio para não chorar, se você me entende.
– O que a senhora acha de Brasília?
– Se dissesse que aquilo lá é uma vergonha estaria sendo benevolente. Você acredita que não me deixam entrar mais no Senado e na Câmara? Instalaram um bloqueador de sinal de indignados na área. Puizé.
– E o Futuro, o que a senhora espera dele?
– Desse gigolô da Esperança? Nada. Mesmo não correspondida, tenho um caso de amor com o Presente. Ao lado dele, se ele tiver coragem, estou pronta para reivindicações, protestos, passeatas – tudo já! Mas ele sempre adia, me engambela com reformas que nunca virão, como a agrária e a tributária. Fazer o quê? Sou humana!
– Alguma mensagem final para a população?
– Vai parecer saudosismo, mas queria que lembrassem dos anos 60, 70, 80. Eu era uma líder e os poderes temiam as multidões atrás de mim. Ah, deixa pra lá.