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Não existe povo que ouça mais música popular brasileira que o carioca. Os taxistas são a maior prova disso. Quer dizer, não sei falar sobre as cidades que não são íntimas, São Paulo é, Curitiba é, Porto Alegre, Brasília, algumas outras são. Em nenhuma delas se ouve tanto a nossa língua cantada como no Rio de Janeiro. E que lindo é dar a volta na Lagoa ouvindo a voz de Luís Melodia às duas da manhã. E apesar da minha eterna ligação direta, como disse Caetano, de brasileiro do Sul do país com o rock anglo-saxão, toda minha vida envolveu meu amor pelas obras primas da nossa música popular. Nem sempre são elas que tocam nos rádios dos taxis gelados que entro. Raras vezes são. Mas ontem, por exemplo, ouvi Retratos, disco de 1964, do Radames Gnattali e Jacob do Bandolim, viajando em câmera lenta para o Jardim Botânico, pensei, pela primeira vez em voltar definitivamente para a cidade de onde fui embora aos 11 anos. A faixa 6 que, se eu não me engano, encerra o Lado A, chamada Moto Contínuo foi a responsável por essa idéia louca. Foi aqui também que, um dia, disse para Marieta que amava aquela  última parte de “De Todas As Maneiras”, e cantarolei timidamente: “Agora, já passa da hora, tá lindo lá fora, larga a minha mão, solta as unhas do meu coração, que ele está apressado. E desanda a bater desvairado, quando entra o verão.”

Pois bem, é verão no Rio de Janeiro. E isso me lembra dos meus 10 primeiros anos de vida. Brincar nos pés do meu pai na praia de Ipanema, ser carregado pelas mãos de minha mãe, e mais tarde, o cheiro de cachimbo e uísque e na vitrola o lado B de Amoroso do João Gilberto: Faixa 1 Wave, Faixa 2 Caminhos Cruzados, Faixa 3 Triste, Faixa 4 Zíngaro. Todas de Tom Jobim, algumas com parceiros como Newton Mendonça e Chico Buarque. O mesmo Chico que anunciava o verão no Rio, o mesmo de “Meus Caros Amigos”, um dos discos da minha vida, bêbado, grave, com aqueles arranjos do Francis Hime, Antonio Adolfo, Luiz Claudio Ramos e o Altamiro Carrilho. Lá em casa ouvíamos Os Cariocas, Ernesto Nazareth, Ary Barroso e Dorival Caymmi cantando “Nem Eu” e Vinicius de Moraes.

Quando no frio de Curitiba, no final da década de 80, éramos punks, ouvíamos samba carioca tradicional. Sim, é claro, ouvíamos, Buzzcocks, Richard Hell, The Specials, The Stooges, The Pogues, The Slits, Count Five, Modern Lovers, Monks, mas não havia diferença e sim um contraste complementar, brilhante e arrebatador quando ouvíamos Noel Rosa, Ataulfo Alves, Nelson Cavaquinho, Paulo Moura (aquele disco lindo de 1959), Geraldo Pereira, Wilson Batista, Assis Valente, Ismael Silva. De Noel, ouvíamos Polêmica, Pra Que Mentir (sobre a qual Caetano compôs uma de suas mais belas: Dom De Iludir), cantávamos Seja Breve, Gago Apaixonado, O que é que você fazia?. Do Moreira da Silva, gargalhávamos com a politicamente “Maria da Penha” incorreta Na Subida do Morro (“Na subida do morro me contaram que você bateu na minha nêga, isso não é direito, bater numa mulher que não é sua”). O disco de Jards Macalé “4 Batutas e 1 Coringa”, chegou por essa época, então, muito Paulinho da Viola e Lupiscínio Rodrigues também. Para Ver As Meninas virou nome de peça minha (Samba sobre o Infinito). Do Lupi repetíamos “Nunca, nem que o mundo caia sobre mim (…)”. Isso é My World Fell Down do The Ivy League, não é?
Depois, Itamar Assumpção (ando procurando essa nova caixa dele e não acho em lugar nenhum), Arrigo, Premeditando o Breque (que nome incrível) e o rock brasileiro para o qual tive pouco ouvido mas, mesmo assim, me fez a cabeça. Cazuza e o Barão, Defalla, Beijo AA Força, O Passo do Lui. Brasília, ainda é um lugar especial pra mim por causa deles. Tem uma história que eu adoro contar: Renato Russo foi literalmente expulso da cidade depois dos acidentes no clássico show do Estádio Mané Garrincha no final dos anos 80. Antes disso viveu, no olho do furacão, a repressão dos anos militares. Filmei em 2008, 40 anos depois da invasão da Unb, meu primeiro longa metragem, Insolação, na cidade. Algumas cenas, dentro do Hospital Militar de Brasília. Numa das paredes, para que todos lessem, a frase “Quando se aprende a amar, o mundo passa a ser seu”, do Renato, do garoto que cresceu e sofreu naquela cidade
De outros tantos falei aqui, Heitor dos Prazeres, Lanny Gordin, Orestes Barbosa, Sinhô, Os Mutantes, Rita Lee. De outros ainda não falei, por falha ou falta de oportunidade: Nei Lisboa, Cassia Eller (uma das meninas mais doces que conheci), Sergio Sampaio, Tim Maia, Sueli Costa, não falei sobre o quanto admiro Aldir Blanc, não falei sobre o gênio de Arthur Faria, nem sobre Cida Moreira, nem falei sobre São Paulo e o Ira!, nem sobre Recife, Chico Science e a Nação Zumbi.
Na noite da morte de Tom Jobim, a Rede Bandeirantes passou, completo, aquele especial feito sobre a gravação do disco Elis & Tom em Los Angeles. Um documentário com imagens e uma cor inigualáveis, filmados em 16mm, em 1974, e inexplicavelmente raro e não lançado até hoje. Nas bancas de jornal, no dia seguinte, uma matéria da Revista Veja, com a foto mais bonita de Tom, acho que aquela,  desembarcando de um avião e andando pela pista, com o título “Triste é viver sem Tom”.
Enfim, como todo meu repertório Anglo-Saxão, conheço poucas músicas tão bonitas quanto “Como 2 e 2”  e “Farrapo Humano”. Pra quem ficou curioso, a música de Melodia que tocava no rádio e na Lagoa era Decisão (“Quem vai embora sou eu, não tenho nada a perder”). No fim, a vida é feita de muitas coisas e poucos momentos como esse. E como nos ensinou Kierkegaard, eles não se repetirão. Um dia volto pra essa cidade, nem que seja pra viver o destino que não vivi.

Felipe Hirsch (O Globo)

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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