Karam, Kafka e outra homenagem

Foto de Ana Barrios.

A editora curitibana Kafka Edições acaba de lançar cinco livros da sua coleção Antena. Os livros são belíssimos, com um apuro gráfico maravilhoso (as capas são de Marco Sandrini) e uma seleção de prosadores bem interessantes. Vamos aos títulos e autores:

Acaso Pensado, de Luci Collin (que também é editora da Kafka).
Arquivo Morto, de Marcelo Benvenutti.
Inverno Dentro dos Tímpanos, de Luiz Felipe Leprevost.
Osculum Obscenum, de Paulo Sandrini (também editor da Kafka).
Jornal da Guerra Contra os Taedos, de Manoel Carlos Karam.

Infelizmente, ainda não tive tempo de ler todos os cinco, mas já li o do Karam, que é ótimo! O Jornal da Guerra Contra os Taedos é incrivelmente engraçado e escrito com uma prosa saborosíssima. O Jornal é uma tiração de sarro em cima de todo e qualquer “poder estabelecido”. Nele, a guerra vira uma festa carnavalesca e as bombas viram puns. Vejamos três exemplos exemplarmente exemplares:

PELA MANHÃ, depois de passar a noite guerreando, os canhões apresentavam rachaduras nas bocas e eu fui escalado (queriam que eu tivesse alguma atividade mais útil que tomar notas) para verificar quantos tiros eram dados até que as rachaduras aparecessem. Passei a noite ao lado de um canhão usando bolas de papel enfiadas nos ouvidos. De manhã, informei que a rachadura apareceu no tiro 82. Para a noite seguinte foi dada a ordem que cada canhão cessaria fogo após 81 tiros. Tentei vender esta informação aos taedos, mas eles ofereceram pouco e mandei os taedos pra puta que os pariu. (p. 25).

FOI DETERMINADO por lei que, em razão da necessidade de pressa em tempo de guerra, a palavra guerra poderia ser escrita ou pronunciada com um erre apenas. Pequenas atitudes como esta ajudam a ganhar a guerra, disse o porta-voz do exército. E por que não porra com um erre só?, disse o porta-voz da Gramática. (p.79).

O SOLDADO TAEDO desconhecido levantou do túmulo, comprou jornal, leu o caderno de esportes, fez as palavras cruzadas e retornou ao túmulo. Os taedos contavam a história assim. Nós contávamos assado. O soldado taedo desconhecido levantou do túmulo, comprou flores, foi ao bordel entregar as flores para a mãe dele e retornou para o túmulo, sem ler jornais porque era analfabeto. (p. 117).

Lendo o Karam, logo me lembrei do Bakhtin e seu A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (Hucitec/Edunb, 1996), quando ele fala do carnaval e a sua capacidade de desafiar o medo com a força subversiva da alegria e do riso: O carnaval (repetimos, na sua acepção mais ampla) liberava a consciência do domínio da concepção oficial, permitia lançar um olhar novo sobre o mundo; um olhar destituído de medo, de piedade, perfeitamente crítico, mas ao mesmo tempo positivo e não niilista, pois descobria o princípio material e generoso do mundo, o devir e a mudança, a força invencível e o triunfo eterno do novo, a imortalidade do povo. (p. 239).

Aliás, como está escrito logo no início de todos os cinco livros, a “Coleção Antena é uma homenagem a Manoel Carlos Karam”, que faleceu em 2007. E, para homenagear o Karam, cito, mais uma vez, Bakhtin: Se o inferno cristão depreciava a terra, afastando-se dela, o inferno do carnaval sancionava a terra e o baixo da terra como o fecundo seio materno, onde a morte ia ao encontro do nascimento, onde a vida nova nascia da morte do antigo. (pp. 346-347).

A cada leitura do Karam, ele renasce, novo em folhas. Por isso, leiam o Jornal (que traz sempre boas novas e é imprestável, felizmente, pra embrulhar peixe). Vocês vão ver que, depois de o ler, tudo o que parecia sério, de repente, se desmancha, ridícula e risivelmente, no ar.

Paulo de Toledo, Santos (SP)

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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