Vós que me ledes, caros leitores, deveis saber que um sujeito na minha posição recebe uma quantidade enorme de poemas. São livros, revistas, emails, o escambau. Uma tendência que tenho observado nos poetas de hoje é o uso dos pronomes “tu” e “vós”, geralmente de maneira equivocada. A segunda pessoal do plural é uma área pronominal em franco desuso e decadência, só chamada a intervir quando se trata de discursos parlamentares, ofícios burocráticos ou romances históricos. Aí pergunto: por que motivo, caros colegas, insistis em usar esses pronomes, quando torna-se evidente que não tendes a menor familiaridade com eles?

Acho que a principal razão para que lanceis mão de um tratamento tão obsoleto é o afã de conferir ao vosso discurso um tom de nobreza, de pompa, um vocativo formal e hierático capaz de evocar ao leitor um tempo ido, um mundo passado onde as fórmulas de respeito não eram mero clichê retórico. Procurais assemelhar-vos (mesmo que estilisticamente) aos protagonistas dessa era remota, porque percebeis (e repelis) o tom escrachado e frívolo dos tratamentos de hoje, com sua galhofa impudente, sua fingida intimidade entre interlocutores. Entendo e aceito, mas advirto: examinai bem vossas Gramáticas empoeiradas, recorrei ao Google quando necessário, insisti junto aos mestres, mas tende piedade dos leitores mais sensíveis.

Dias atrás li um poema que dizia assim: “Ide, poeta! Consintais que a vida te procure!” Meu caro e anônimo autor! Estás tão dividido e dilacerado quanto aquela dupla de irmãos siameses indo ao Fla-Flu no Maracanã. Ou bem te diriges ao poeta com a intimidade propiciada pelo “tu”, ou com o distanciamento e respeito implícito no “vós”. E olha que ainda estamos apenas no plano da intenção inicial, porque a forma usada no teu verbo, “consintais”, salta da frase como o bigode da Mona Lisa de Marcel Duchamp. Estuda! Treina os verbos mais traiçoeiros. Inventa para ti próprio um exerciciozinho como este, destinado a flexionar teus neurônios gramaticais. Tu os tens, e não são poucos. Precisam apenas de algo que só tu lhes podes fornecer: exercício. Mas não vás adiante de ti mesmo. Usa apenas o que sabes usar. O poema não é o território adequado para tentares pela primeira vez um tipo de elocução ao qual não te acostumaste. Consola-te pensando que todo mundo erra, eu primeiro que todos.

Vou mais além. Vós todos, Brasil afora, que vos acostumastes à estreita gama de tratamentos da linguagem coloquial da indústria-de-massas, devíeis freqüentar de quando em vez um “spa” com o nome de “Seminário de Português Aplicado”, do qual só sairíeis quando soubésseis conjugar, na ponta da língua, os verbos mais abstrusos. Mas se achais (como bem podeis) que tudo isto não vale a pena, basta continuardes empregando o feijão-com-arroz do você e do vocês. Não são anti-poéticos. Qualquer coisa pode ser poética, se souberdes usá-la com beleza, propriedade, criatividade, e, acima de tudo, bom-senso.

Braulio Tavares

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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