I
– Djô (1) soy sulamericano de nacencia…ó xente…em los 50 e 60 las americas passavam pelas ventanas de minhas janelas, los estudiantes caminavam e cantavam pelas quadras nas cercanias de mi casa, para almuerzar en lo bandejón por medianos cruzeiros, moneda brasileira.
Em uma rua próxima ao centro histórico de Curitiba circulavam estudantes procedentes do interior paranaense e de diversos pontos do Brasil e da América do Sul. A maioria vinha para estudar medicina ou engenharia.Vivíamos os primeiros anos da década de 1960. Nascia Brasília. Na capital do Paraná, o presidente JK (o nosso Juscelino e não o equívoco John Kennedy) inaugurava a casa do estudante.
Paula Gomes era a rua, que na atualidade se mantém praticamente a mesma: o mesmo nome, as mesmas pedras na velha e conhecida calçada, os mesmos paralelepípedos, hoje em dia ideais para um tráfego mais calmo; naquele tempo todas as ruas da cidade eram de pedra ou de chão, exceto o caminho do palácio Iguaçu – uma das primeiras experiências de concreto armado em vias urbanas. Asfalto, só em algumas estradas.
Havia na Paula Gomes apenas três automóveis: um chevrolet 52 e dois volkswagen do ano – uma kombi e um fusca -, estes dentre os primeiros carros feitos no Brasil. As casas mais antigas ainda estão lá, pelo menos um punhado delas, em contraponto a poucas construções de baixos patamares. Mudaram só os moradores, os comerciantes e a modorra – esta substituída pela paranóia epidêmica que grassa nas ruas brasileiras, em zonas de alta densidade demográfica.
Falávamos um bom portunhol(2), mais castelhano do que português. O piá de dez anos e outros meninos visitavam as repúblicas de estudantes e percorriam as redondezas, defendendo como zagueiros irmãs, primas e vizinhas das embaixadas daqueles escolares exóticos – nas horas boêmias eles cantavam, sapateavam, faziam mágicas, ficando a exibir artes surpreendentes, contar causos inacreditáveis, tocar instrumentos reveladores de suas vertentes: da viola caipira ao bandonión portenho, do pandeiro ao bandolim, da sanfona nordestina à harpa guarani…
II
Era um grande encontro do país-continente de tantos brasís com o insalubre continente-país iberoamericano: a América do Sul.
– !Mi madre me deu à luz a los 12 de octubre, en la mesma data do descubrimiento de las americas! Soy brasileiro y latino mucho americano! sem embargo de las graças de nuestra señora da aparecida do norte, ave maria brasileña!
Conversávamos e jogávamos baralho nas pensões dos estudantes, que disputavam a apresentação dos mapas de suas origens. Brincando, aprendíamos geografia e história, nomes e datas importantes; tudo era passado ou futuro, o presente passava despercebido.
Impressionante é que não tinha mulher alguma, nem gay oficialmente reconhecido, entre os estudantes vindos de fora. A revolução de costumes dos anos 60 ainda não surtira seus efeitos no mundo. Havia ali uma sufocante babel de machos: do Pernambuco, Amazonas, Mato Grosso, Minas Gerais, interior de São Paulo, Bahia, Santa Catarina, Rio Grande; paranaenses de Ponta Grossa, Guarapuava, Tibagi, Castro, Lapa, Paranaguá, do norte e de outras regiões; imigrantes do Chile, Peru, Colômbia, Venezuela, de todo o continente. Sabe-se que, do Paraguai, o estudante Gamarra, médico homeopata e bruxo ameríndio, ficou por aqui e ganhou fama. Desconhece-se a lista de prováveis outros mais e menos notáveis, todavia é certo que estão por aí mundo afora, velados em nosso imaginário.
III
– Grã encuentro no tiempo quebrado: los esclavos choram no banguê(3) la libertad e o banzo(4); piedras movem las ciudades selvas, los arboles ganham vidas virtuales, la naturaleza aunque vive.
Aos sábados, feijoada completa, aos domingos e feriados mostrávamos a cidade – urbe et orbi(5) -, então chamada capital universitária do Brasil. E não sendo este um título inventado pelo marketing, conceito desconhecido mas contudo presente por aqui: uma atuante associação de propaganda local promovia, em parceria (visionária!) com a Universidade Federal, módulos de verão sobre (pasme!) cultura, política e comércio do café para profissionais e interessados; e aperfeiçoamento de corte e técnica de costura para alfaiates. Aquelas eram lições sintomáticas de um Paraná que se projetava, a partir do ouro verde do campo, e brilhava nos tapetes vermelhos dos palácios e das bolsas internacionais. Era a corrida do café no norte paranaense: Londrina, capital mundial do café.
– Nosotros tendremos ahora as horas de quem sabe fazê-las: hoy si, mañana é tarde…alrededor del mundi vuelaremos hasta los alpes, gaza, sibéria, los grandes lagos ou pra donde los querem os outros? no! alcemos novos vuelos com nuestras allas mismo, como condores, pelicanos, albatrozes, tal águilas caçadoras e no falcones embalsamados; voando como golondrinas (6) em fiesta, zombando de los truenos de agua(7).
IV
Os estudantes caminhavam pela Paula Gomes rumo às esquinas da Carlos Cavalcanti com João Manuel, para almoçar no restaurante da união dos estudantes; a janta era por conta de cada um, assim como gandaias, fuzarcas, bailes, sexo e futebol. Em um casarão mais abaixo, na Paula Gomes, ao pé da praça do homem nu, perto do Passeio Público, se desenhava uma geopolítica muito particular: la república independiente dos estudantes de las américas.
O jardim interno da casa, decorado com enormes galos portugueses, cromados e coloridos, assemelhava-se muito a uma manzana barcelonesa(8), típica arquitetura catalã; o pequeno átrio parecia pronto para uma legítima representação cênica da Península Ibérica. Na grande e árida sala da frente discutia-se o Brasil e as Américas, sem tempo para preocupações com o resto do universo, exceto a Guerra do Suez. Na espaçosa cozinha, o cenário era uma colcha de retalhos sem fronteiras, realista e histórico – algumas vezes fome e vazio, em outras sede e nada, em muitas gula e saques.
A ligação terrestre entre o Atlântico e o Pacífico se consolidava no imenso corredor que conduzia aos quartos de baixo e à escada que ascendia aos quartos de cima. Nos quartos de baixo, as viagens atravessavam léguas. De Paso de los Libres, fronteira gaúcha com a Argentina, a Esperantina, no Piauí. De Punta del Este, no Uruguai, a Panelas, em Pernambuco. De Pedro Juan Caballero, fronteira paraguaia com a brasileira Ponta Porã, a Porto Seguro, na Bahia. De Encarnación a Bom Jesus da Lapa.
Subindo a escalera (9), já nos quartos de cima, chegávamos logo a Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, e Machu Pitchu, no Peru. Passávamos pelo mar colombiano de Cartagena, para finalmente atingir o Arquipélago de Galápagos, no Equador.
Enquanto isso, longe dos seus fantasmas, descansavam no sótão alguns de nossos super-homens totemizados – libertadores, heróis, mártires, mitos: Simón Bolivar, San Martí, general Osório, Zumbi dos Palmares, Lampião, Araribóia, Tiradentes, Cabeza de Vaca, Che Guevara, Don Quixote de la Mancha…
De Paula Gomes, soubemos que fora estudante autodidata, nômade, tropeiro, tocador de rabeca e coincidentemente também libertador: em meados do século 19, no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, capital federal, o jornalista curitibano Francisco de Paula e Silva Gomes tecia loas ao desmembramento político do Paraná, de São Paulo.
– Volveremos a las paisagens tropicaos (10), haberemos de inocular las pororocas ao nepal, muralha da china, tajmahal…el corazón azteca, sangriento, vai a los cielos, a la puerta del sol…Ueiracotcha, deus inca, deus eólico, abrirá las vias de nuestra amplitude, além do vodu(11), do curare(12) y todo más.
Notas
1. Djô – jeito portunhol de escrever o som da palavra cuja grafia é Yo e significa Eu.
2. Portunhol – expressão difundida popularmente entre luso-brasileiros e hispânicos, não reconhecida oficialmente; junção das palavras português e espanhol; mistura da fala dessas duas línguas.
3. Banguê – origem africana; padiola, maca para transportar escravos doentes, feridos ou mortos.
4. Banzo – origem africana; dor nostálgica, saudades desesperadas da mãe África.
5. Urbe et orbi – do latim; relação dinâmica da cidade com o campo, com o resto do mundo; urbe é cidade, orbi é raiz de órbita; há quem verta urbe et orbi para cidade e campo.
6. Golondrinas – do espanhol; andorinhas.
7. Trueno de agua – do espanhol; trovão de chuva.
8. Manzana barcelonesa – do espanhol; ocupação de espaço arredondado, em forma de maçã; solução urbana ou residencial característica da parte velha da cidade espanhola de Barcelona, na Catalúnia.
9. Escalera – do espanhol; escada, escadaria.
10. Tropicaos – experimental, sentido poético; junção de tropical com caos; crítica às condições caóticas da civilização nos trópicos.
11. Vodu – origem africana; religião semelhante ao nosso candomblé; praticada no Caribe, especialmente no Haiti; vodu ainda designa as divindades de Daomé – região da África Setentrional, entre a Nigéria e o Togo.
12. Curare – origem tupi; substância resinosa, amarga e venenosa, que índios da América do Sul usam em suas flechas, tanto na caça – a carne pode ser comida – como na guerra.
PS: A linguagem aqui usada – alguns parágrafos em fonte itálica – é uma leve mistura lingüística experimental, lúdica, sem pretensões de ser um portunhol falado.
Ewaldo Schleder