Foto sem crédito.

Mataram a Carteira do Trabalho. Foi encontrada dias atrás, esfrangalhada, na sarjeta de um beco chamado Mercado. Pela natureza dos golpes, suspeita-se da Crise. Mas o Neoliberalismo não está descartado como o mandante do crime.

Segundo testemunhas, apresentava sinais de sevícia e maus tratos, afora algumas cicatrizes do INSS (sem ligação com a causa mortis). Na ocasião, vestida com o tradicional uniforme azul, estava sem as poucas posses que a caro custo acumulara. Além de saqueada em seus FGTS e PIS, tinha anotações rasuradas e manchas roxas da pancadaria dos carimbos. Disso, porém, a vítima jamais se queixara.

A Carteira do Trabalho começou a se sentir ameaçada a partir da Globalização. Uma não gostava da outra, apesar de a Carteira tudo fazer para se integrar ao desumano regime global. Em quaisquer eventos, das mesas de negociações aos fóruns sociais, a incompatibilidade entre ambas era notória: a Carteira fazia questão de exigir seus direitos e defender melhores condições funcionais; em contrapartida, a intransigente Globalização impunha sua visão mercantilista, a favor apenas da política de resultados.

Escorraçada pelo pragmatismo internacional, a Carteira do Trabalho (cujo nome de casada era Carteira do Trabalho e Previdência Social) ainda tentava aparentar dignidade em sua trajetória trabalhista. Nos últimos tempos, sobrevivia de biscates, bicos e frilas; também se submetia às humilhações da Terceirização, que a explorava em várias áreas profissionais.

Antes do horror final, talvez ciente dos riscos que corria, a Carteira do Trabalho já rabiscara a sua autobiografia. Orgulhava-se do pioneirismo na América Latina, dos benefícios da Era Vargas que aperfeiçoaram seu perfil, de passar incólume pela Ditadura (“Eu amava o Milagre Econômico”, teria ela certa vez declarado ingenuamente) e da sua importância para o conceito de cidadania na atualidade. Como documento de identificação popular, se achava até bonita, sem aceitar plástica para eliminar rugas oficiais.

Respeitada por muitos empregadores e desvalorizada por outros tantos patrões, a Carteira do Trabalho era uma benquista unanimidade junto a todas as categorias trabalhadoras. Seu envolvimento com a classe operária a transformou em bandeira de partidos, e nem mesmo a perda do vínculo empregatício abalou sua vitalidade. Até que, em meio a pressões e recessões, veio a adoecer de flexibilidade crônica. Fragilizada, não resistiu à última agressão do capitalismo selvagem.

O corpo da Carteira do Trabalho se encontra no IML, à espera da conclusão das investigações. Os boatos de que ainda estaria viva e respira por aparelhos são infundados.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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