Ouço a campainha. Desde cedo estou ouvindo a campainha. O telefone toca, gente bate na porta, os cães ladram: movimento. Tudo coisa da minha cabeça. Nunca é ninguém. E os cães morreram há décadas. Quem me olha assim – aquela moça solitária sempre na janela do seu apartamento, por exemplo – deve achar que estou louca. Sento, levanto, ando de um lado para outro, mexo em coisas. Estou nervosa. É como se esperasse alguém. E espero mesmo: você. É meu aniversário. A cabeça está branca, costas curvadas, a saúde em pandarecos.
Uma imagem bem diferente de quando você saiu para ir ao dentista, vinte anos atrás, e nunca mais voltou. Estou no fim, Moreira. Nervos e ossos expostos, flácida, menor do que era. Ano que vem, com esse sopro no coração, a carótida entupindo lentamente, esse trem velho não estará mais na estação. Por isso, quando você chegar, servirei uma fatia de bolo. Preparei de novo o seu favorito, aquele, de chocolate com maçã. Têm frutas cristalizadas, que você adora, abricó, sorvete, tudo do meu feitio. Sentaremos no sofá, oferecerei um licorzinho e colocaremos a conversa em dia, que vingativa é que não sou. A campainha toca mais uma vez. Agora emite um som longo, agudo, que irrita os cães. Mas, eu sei, não há cães. Toda noite esses malditos cachorros. Primeiro rangem os dentes, para anunciar sua chegada. Depois, uivam como lobos para avisar que você não vem. Nos últimos anos, à medida em que iam morrendo, foram ficando mais ferozes, hoje até parecem filhos do capeta. O Pinscher foi substituído por um Rotwailler, o vira-lata deu lugar a três Pitbulls.
Morro de medo que me ataquem. Ultimamente passaram a me fustigar de madrugada, durante o sono. Anunciam tragédias, fazem troça com meu passado. Mostram os dentes todas as vezes que me esqueço de você. Dou uma retocada no pó e abro a porta. Será você, Moreira? Você voltou?