Gustave Flaubert cansou de se queixar, por cartas a várias pessoas, da tortura que era sentar por duas horas e escrever — à mão — duas ou três frases, achar adjetivo, encaixar verbo e complementos — e depois riscar tudo e recomeçar. Sobre Madame Bovary, Flaubert disse numa carta que ‘meu santo romance me dá suores frios. Em cinco meses, desde o fim de agosto, sabe quanto escrevi? Sessenta e cinco paginas’. Só que ele morava com a mãe e podia ficar dias sem conversar com ela. Uma vida sem ação e solipsista — solitária e envolta em nuvens de palavras. Vargas Llosa escreveu a Orgia Perpétua pra mostrar a angustiante jornada de Flaubert quando trabalhava. Sem ler esse livro, esbarramos num do Flaubert traduzido, impresso e até damos de ombro. Nem imaginamos que possa ter custado tanta vida ao escritor. Depois de ler, em compensação, qualquer escritor de hoje deve se sentir um trapo! Tanto pela falta de empenho pessoal quanto pelo descaso com que trata as palavras em suas próprias obras.
Reza a lenda — ou seria verdade? — que Flaubert leu cerca de 1.500 livros pra extrair besteiras sobre todos os campos do conhecimento e colocar na boca de Bouvard e Pécuchet, heróis do seu último livro. Segundo um outro autor, Flaubert fez com eles uma triunfante celebração de sua compulsão maníaca de observar o mundo. O livro foi precursor do nosso FEBEAPÁ — Festival de Besteiras que Assolam o País — com o qual Stanislaw Ponte Preta nos ajudou a suportar o peso dos anos de chumbo grosso.
Pra mim, Flaubert foi o primeiro escritor-cientista. Ele testava tudo antes de usar. Mesmo assim, depois disso, se torturava pra transformar em frases bem soantes pra compor suas sinfonias. Ele se gabava de que toda vez tinha que pôr o oceano dentro de uma garrafa. Sem transbordar! Ele vivia dizendo pro Zola: observar, observar e depois observar de novo!
O escritor Henry James disse, numa introdução do livro Madame Bovary, que achava incrível o fato Flaubert de ter iniciado Bouvard e Pécuchet, de não ter desistido da obra antes de ser descartado por ela. Acrescentou que ‘é seco como areia e pesado como chumbo’. E foi além relembrando que Flaubert amaldiçoava os temas escolhidos, desejava não tê-los escolhido e odiava o momento em que se dedicava a eles.
Claro que Bouvard e Pécuchet ficou inacabado. Foi impresso depois da morte do escritor no pé em que estava. Só poderia ser interminável, pois é desmesurado o acúmulo de besteiras pelos séculos afora — maior do que o de corpos celestes. Flaubert, pra continuar no céu, se meteu num buraco negro. Dentro dele, ainda teve tempo de projetar um novo livro que chamava previamente de A espiral — um romance sobre a loucura, ou, antes, sobre a forma como se enlouquece. Esse projeto nunca veio à tona — pra desgosto de editores e leitores que ainda não foram atraídos pelo monstro de onde nem a luz escapa.
Rui Werneck de Capistrano é autor de Nem Bobo Nem Nada – 5|5|2011