Liérmotov, um dos maiores poetas clássicos, morreu aos 27 anos em um duelo. Gárchin, mestre do conto curto, suicidou-se aos 33 anos. Púchkin, o maior poeta russo, duelou e morreu aos 38 anos. Checov, mestre supremo do conto, se foi pela tuberculose aos 44 anos.
Sempre que penso na Rússia, vejo aquele cocheiro do conto do Checov. Envolto em surrado manto, coberto pela nevasca implacável, ele espera clientes e monologa tristemente — ou fala com seu manso cavalinho — a imobilidade, a neve, o frio, a solidão.
A Rússia são distancias imensas — as vastas estepes. Agora, imagine um escritor desesperado numa noite de insônia, cheio de dúvidas, nervos em frangalhos, com a fome rondando como um cão sem dono. Ele é um tipo de escritor — descrito por ele mesmo — forçado a mostrar o terrível e chocante pântano das coisas triviais, enquanto os leitores roubam dele seu coração e sua alma.
O escritor acorda o criado Iakim, apenas um garoto, e pede que acenda a lareira. Como? Até aquele momento a lareira esteve apagada? E o frio? É fevereiro de 1852, pleno inverno! Não importa. Uma vez aceso o fogo, o escritor fica ainda mais impaciente. As chamas lambem seus nervos e ele pega um folhoso manuscrito — sua obra mais recente — e vai na direção da lareira. O garoto, percebendo o suicídio iminente, tenta segurá-lo. Mas não consegue — é só um garoto contra uma fera enraivecida. As folhas se espalham dentro da lareira e o fogo vai consumindo rapidamente. O garoto ainda quer pegar o que está apenas chamuscado. A ordem é que tudo se queime. O escritor fica contemplando, absorto, as chamas que selam seu definitivo suicídio literário. Quando o espetáculo pirotécnico termina, ele começa a chorar amargamente.
Enquanto isso, seus leitores, em casas mais ou menos aquecidas, sonham felizes com o que seria — se completada em três partes — a Divina Comédia das Estepes.
A segunda parte de Almas mortas está definitivamente destruída. Em 1845, o escritor já havia queimado o primeiro manuscrito da segunda parte. E reescreveu. Agora, o fim.
Esta é a tragédia dos grandes escritores russos. Ela percorre toda a imensidão das estepes — tão imensas como as pálpebras do sombrio Vii — que chegam até o chão e nunca se erguem. O olhar dele também nunca se ergue do chão.
Por isso, à lista lá do começo, acrescento Gogol — morreu de inanição, por jejum autoimposto, aos 43 anos. Nove dias depois da queima do manuscrito. Quando Dostoiévski lançou seu primeiro livro Pobre gente, em 1846, um poeta o saudou como um novo Gogol.
Rui Werneck de Capistrano é autor de Nem Bobo Nem Nada