Não confunda Schopenhauer com Shopping Hauer. Ou, confunda. Tudo é consumo. Hoje acordei e toquei o Schopenhauer que estava dormindo embaixo da cama. Cabisbaixo, ele me confessou: — Quanto à vida dos indivíduos toda biografia é uma história de sofrimento; porque, em regra, toda existência é uma série contínua de malogros, grandes e pequenos, os quais, é verdade, a gente esconde o mais possível, porque se sabe que os outros raramente se interessam ou se apiedam, mas…
— Peraí, interrompi nervoso, se diz que os outros raramente se apiedam, porque eu deveria escutar isso?
Ele não se importou e continuou— mas, quase sempre mostram satisfação, ante o relato de sofrimentos de que nesse momento estão isentos; — Ah, agora sim, concordo! Continue — mas, jamais talvez, ao fim de sua carreira, de posse de toda sua razão e sendo sincero, deseje o homem recomeçá-la; — Ops, sinceramente, discordo. Começar de novo deu até música! Vá adiante — (…) Se fizéssemos o mais obstinado dos otimistas percorrer os hospitais, lazaretos e salas de operação cirúrgica, os cárceres, as câmaras de tortura e as senzalas dos escravos, se o conduzíssemos aos campos de batalha e aos locais de suplício, se o fizéssemos penetrar em todos os sombrios redutos onde a miséria se enfurna subtraindo-se aos olhares da vadia curiosidade, se, — Calma aí! Que frase, heim? Porrada! — enfim, o fizéssemos lançar um olhar para a torre de Ugolino esfomeado, por certo ele mesmo compreenderia, afinal, de que natureza é este “melhor dos mundos possíveis”. — Bem, acho que a gente já passeia por todos esses lugares só andando pelas ruas de uma cidade grande. Aqui, um mendigo debaixo da marquise. Ali, um esfarrapado doente e mutilado. Mais pra lá, um seminu besuntado andando de bicicleta. Cada um de nós tem uma couraça protetora. Se ela não existisse, nós choraríamos, nos descabelaríamos e cairíamos prostrados diante de cada ser humano em condições miseráveis. Seria um desespero sem-fim. A nossa natureza nos deu uma proteção extra. Hiii! Já estou vendo leitores se abanando e deixando o recinto.
E assim fui discutindo com meu cão Schopenhauer. Chope para os íntimos. Ele com seu soturno olhar canino e eu com vontade de ir pra rua ver a multidão indo e vindo.
Estranho, depois de ficar duas horas lendo na Biblioteca, saio à rua e não entendo a gentarada toda indo e vindo. Não vejo sentido, não sei pra onde estão indo, o que pensam, de onde vieram. Só vejo corpos, roupas, roupas, corpos, roupas, cabeças baixas, roupas, pacotes, poucos rostos e nada de olhos nos olhos. Schopenhauer saiu comigo, mas se perdeu no meio do povão e nunca mais voltou pra casa. Acho que foi levado pela última enchente. Ou… você teria alguma notícia dele?