Recentemente, fui provocado por um amigo de infância para responder sobre os shows da minha vida. Passei uma noite pensando no assunto. Os melhores, quase sempre aconteceram por circunstâncias erráticas, ocasionais, porque despertaram algo novo em mim, uma idéia, uma sensação estranha, que às vezes só é compreendida tempos mais tarde. A primeira vez foi Rita Lee. 1980, acho.
No meu colégio, Sn. andava cantarolando as faixas de um disco novo no recreio: “but if I had your faith, then I could make it safe and clean, if only I was sure, that my head on the door was a dream”. E se à noite saíssemos para dançar (coisa que eu não fazia) era pra ouvir a voz de Robert Smith. Meu amigo A. namorava K., que foi morar em Nova Iorque, e foi abraçando L. que eu ouvi pela primeira vez Just Like Heaven. Todos, fomos para São Paulo assistir o show do The Cure, no Ibirapuera, no dia do meu aniversário, em 1987.
Lembrei do Longue Lizards em 1988. Foi assim, desatou um nó na minha cabeça. Já conhecia John Lurie e Tom Waits em Down By Law, mas aquele show atonal, trôpego, com Marc Ribot na guitarra, me arrebatou. Um ano depois, John Zorn tocou seu Naked City com um skate nos pés. Temas de Ennio Morricone e Ornette Coleman tocados com uma rapidez e consciência inacreditáveis.
Os incontáveis do Beijo AA Força. Lembro especialmente de uns realizados em um bar chamado 481 em Curitiba. Mano Negra na Lapa, com a participação de Jello Biafra cantando I Fought The Law, música de Sonny Curtis e dos Crickets. A versão mais conhecida, claro, é do The Clash, mas o Dead Kennedys havia gravado a canção em homenagem a Harvey Milk, ativista gay assassinado em San Francisco. Lembro que o show foi muito violento. Voava sangue do Bodyslam praticado.
David Bowie trouxe Earthling para a Pedreira Paulo Leminski. Inacreditável. Era o disco que mais ouvíamos na época. E era David Bowie. Eu já havia assistido Sound and Vision mas nada comparável com aquela simulacão sexual durante White Light White Heat. Sobre Morrissey em Curitiba já falei muito. E a chuva ácida sobre os neons da Tour Up do R.E.M. Um show para mais de cem mil pessoas sem nenhum vídeo, só sinais iluminados, ideogramas, símbolos. A experiência nos levou para casa serenos, em silêncio, como se tivéssemos testemunhado um ritual de sabedoria e equilíbrio.
A mão direita de João Gilberto vista da primeira fila em São Paulo. Beth Gibbons capaz de suspender o tempo com sua voz cheia de nicotina. Falei também sobre o Pixies na Pedreira. Outros inesquecíveis: Bob Dylan em Glasgow, P. J. Harvey e o clássico Kraftwerk em São Paulo. Em 2005, eu e minha amiga, a fotógrafa Carol Sachs, dormimos no tapete vermelho do Koko em Londres, resultado de algumas noites seguidas em claro. Acordamos no show insano do Art Brut. Eddie Argos passou mais tempo em cima da platéia, praticando Crowd Surf, que em cima do palco. Este também foi o ano em que vi, pela primeira vez Elvis Costello!
O Franz Ferdinand fez o, improvável, maior show que já vi na tenda do Circo Voador. Quem estava lá sabe do que estou falando. Também nunca esquecerei do The National no Pier 17 e de Rufus Wainwright, sob a chuva, no Central Park. E é claro, os sonhos realizados: Pogues e Madness no Victoria Park e Leonard Cohen na Antuérpia, já relatados aqui. O Planeta Terra nos presenteou com 3 shows históricos nos últimos anos: Devo, Sonic Youth e Iggy Pop. Somos órfãos do Tim Festival de Monique Gardenberg, a quem devemos boa parte dessas experiências incríveis. Caetano Veloso é sempre inesquecível também. Paulo Leminski invadindo o palco da tour Velô gritando “Cajá!”. 3 horas de atraso e um público extremamente agressivo no show seco do melancólico e lindo disco de 87.
Como sou torto, vejo graça até no show do Gomez dentro de uma pequena loja de discos. Mas o Radiohead é inquestionável. Nunca ouvi uma qualidade sonora assim. Som sendo usado de verdade, com seus volumes, com uma delicadeza e uma capacidade profissional inigualáveis.
Falando sobre os shows que perdi, não vi o caótico e histórico show do Nirvana em São Paulo em 1993. Não vi Kurt Cobain sair de quatro, se arrastando, vestindo uma camisola, no show do Rio. Não vi Prince chamando a Paula, uma amiga, pra dançar no palco. Não vi Supergrass em Atibaia. Não vi Chet Baker, aqui no Brasil, em algum dos últimos shows de sua vida. Não vi Paulinho da Viola no Paiol. Não consegui ingressos. Só ouvi de fora ele abrir o show cantando Comprimido e aquilo partiu meu coração irremediávelmente. E não vi Chrissie Hynde com Johnny Marr. Vi agora The Pretenders no Shephards Bush. Morrissey estava na platéia mas Johnny Marr longe do palco.
Para encerrar, meu amigo Caio, a história que não me esqueço é da Fab. que fez xixi na calça, parada em pé, para guardar seu lugar sagrado no show dos Ramones. Hoje, ela é professora particular de inglês ou alemão, e ela um dia, provavelmente, vai ter um filho e vai esquecer dessa história. Um dia ela vai ouvir de novo, sem querer, Sheena Is A Punk Rocker e vai balançar o ombro, constrangedoramente, para desespero do seu filho, dizendo: essa é do meu tempo! E o garoto ainda vai amar aquela música, porque isso é eterno. Os meus discos do Captain Beefheart me dizem disso. É claro, nós não vivemos num país de mães junkies desdentadas, vivendo em Elephant and Castle, que dançam coletâneas da Two Tone. Nossa cidade é de velhos intelectuais que guardam seus vinis em armários mofados cheirando a uísque, e que ao cair da tarde, com o vento e a maresia, pousam a agulha sobre um vinil do Tom, lembrando do barulho das ondas e do Beco das Garrafas.
Felipe Hirsch (O Globo)