Geologia de um zoológico
Attenberg abre com Marina (Ariane Labed) recebendo uma aula de como beijar da sua melhor amiga. Pouco importa que ela tenha cerca de 20 anos: Marina nunca beijou ninguém antes e está curiosa pela experiência. É uma perfeita apresentação: muito bem imaginada e envolvente, que aponta bem claro o estranho equilíbrio que Athina Rachel Tsangari busca em seu filme e sua protagonista, cujo olhar é muito mais inocente do que sua aparência, sem poder sugerir jamais um olhar simplesmente infantilizado. Essa dualidade se reflete nas duas pontas narrativas que o filme desenvolve com Marina, precisando se despedir do pai doente e tendo seu primeiro romance com um viajante de passagem pelo local.
O título do filme vem do zoólogo cujos filmes de observação de animais o pai de Marina gosta de assistir (um dos hobbies dos dois é justamente imitá-los depois), e Attenberg como um todo é ele próprio uma espécie de filme sobre o comportamento de animais, uma espécie de observação social parte Chabrol, parte Haneke, com uma narrativa de filme adolescente. Um dos seus grandes méritos é justamente a quantidade de boas soluções que Tsangari vai aos poucos desenvolvendo, começando pelo ritmo musical que é logo estabelecido – e pensamos aqui menos nos interlúdios estilizados entre Marina e sua amiga, e mais na montagem que encontra o tom certo para administrar os muitos elementos díspares e estilizar o filme, sem com isso perder a precisão do seu olhar. Há muitas excelentes soluções de encenação como na já mencionada seqüência de abertura, ou, numa chave mais seca, em toda a subtrama em que Marina procura informações para cremar o pai (um problema sério num país de população quase inteira ortodoxa e onde cremar um corpo é tão ilegal quanto possível num estado laico).
É este olhar apurado que se destaca nos dois elementos mais fortes do filme: a forma como Attenberg delineia a relação filha/pai, com tudo que ela tem de afetuosa e muito complicada; e, de pano de fundo, a forma como aos poucos costura suas relações com a cidade industrial decadente em que a ação se passa. A razão de ser de Attenberg está ali, nestas ruas que Marina atravessa, nas construções cada vez mais abandonadas do local. Há uma visível influência de Deserto Vermelho, de Michelangelo Antonioni, no uso deste lugar. Attenberg vai aos poucos virando um estudo de como este lugar e este pai, eminentemente ligados (e agonizantes), ajudaram a formar o autismo social de Marina. Apesar de fascinado pela idéia do comportamento humano que regride até o animal, Attenberg pensa no zoológico que serve de habitat para seus personagens tanto quanto ou mais do que neles próprios.
Com todas as suas soluções muito bem imaginadas, Tsangari não deixa de realizar um filme muito irregular, onde a cada duas seqüências fortes temos outra em que pesa a mão neste drama como alegoria, na regressão de seus personagens ou no comportamento excessivo da sua protagonista. Boa parte da outra subtrama, com o engenheiro de passagem, pelo local sofre destes problemas. Seria fácil debitá-los a Yorgos Lanthimos, diretor de Dentes Caninos, que interpreta o engenheiro e também é produtor do filme, mas se a sua influência é visível (por todo o filme, vale dizer), em muitas outras áreas Attenberg se distancia muito do seu longa.
O maior problema desta outra metade do filme é que, enquanto Marina, seu pai e sua amiga são muito bem pensados, a concepção do engenheiro é tão vaga, tão pouco mais que um conceito que suas seqüências não escondem o que elas têm de excessivamente construídas, sendo pouco mais que uma função para que determinados pontos sejam expressos. Nestes momentos, todo o cuidadoso equilíbrio de Attenberg se desfaz e ficamos com o zoológico de Tsangari no que ele tem de menos atrativo. Filipe Furtado