Já contei o coup de théâtre do Millôr numa Jornada Literária de Passo Fundo, quando ele leu um discurso em defesa da democracia e dos direitos humanos que empolgou a plateia. No fim, o Millôr esperou que os aplausos (de pé) terminassem para revelar que tinha acabado de ler o discurso de posse na Presidência da República do general Garrastazu Médici, que inaugurava o período mais repressivo e violento da ditadura militar.
O episódio exemplifica vários aspectos do gênio do Millôr. Em primeiro lugar, ele demonstrou na prática a disposição da plateia – qualquer plateia – a se deixar entusiasmar por palavras que não são mais que palavras, quando não são mentirosas. Em segundo lugar, ele desnudou a hipocrisia, beirando o cinismo, não só dos generais do regime como de muitos dos seus apologistas de fatiota, que nunca admitiram estar fazendo outra coisa senão defendendo a democracia. Millôr provou o perigo e a inconfiabilidade da retórica em qualquer situação e fez a plateia, ludibriada pelo seu próprio truque retórico, reconhecer-se ludibriada por todos os discursos altissonantes que deformam a realidade e disfarçam suas verdadeiras intenções.
Não é preciso dizer que a plateia o perdoou e o aplaudiu outra vez. De pé.
Luis Fernando Verissimo é escritor