Nascido para voltar

Cinquenta anos depois ele voltou para a encruzilhada onde nasceu. Asfaltaram tudo, não havia mais terrenos baldios e desapareceu o morrote onde, com sua turma da rua, várias guerras foram deflagradas, lancinantes cavalgados, bólidos de papelão pilotados. Algumas casas teimavam em se manter como velhos retratos num álbum guardado no fundo de uma gaveta esquecida. No lugar onde morava, o casarãoda frente deu lugar a um caixote horrível de três andares. Ele chegou mais perto e viu que havia um corredor numa das laterais. Lembrou dele, agora bem mais estreito, onde certa vez quase perde o saco num carrinho de rolimã. Então notou que lá no fundo ainda estava em pé a meia-água onde passou os primeiros anos de vida. Caminhou até lá. Um cachorro latiu. Só parou diante de uma grade que separava os fundos do prédio do quintal da casinha. O telhado tradicional tinha sido substituído por amianto. Não havia mais o poço onde um dia pensaram que ele tinha caído. Nem o minúsculo banheiro onde tomava banho de água gelada saída de um cano sem chuveiro. Era tudo muito pequeno. Ele chorou e teve certeza do quanto tinha crescido por ter começado a aventura ali. (Cabeça de Pedra)

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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