Paulo Leminski me faz companhia há quase cinquenta anos. Têm dias que isso me cansa. Em outros, me encanta. Às vezes, ele tira férias e vai pra não sei aonde. Isso me dá um sossego meio incompleto, de um tipo que desassossega. Sim, porque a gente nunca sabe o que pode acontecer nessas ocasiões. Talvez se meta em alguma enrascada e chame tarde da noite. Amigo é pra essas coisas, tudo bem. Mas pra quem me disse repetidas vezes ser a morte apenas um dos eventos possíveis a cada momento, dá pra imaginar como me sinto quando desaparece. Claro que isso não ocorre com muita frequência, ainda bem. O mais comum é que ele esteja por perto. Então, perambulamos. Ora somos pedestres em frente ao cursinho Abreu, onde ele ensina história e literatura, ora descemos a rua XV até o edifício Garcez, pois ali ele treina judô. Sobre o que falamos? Qualquer assunto. Paulo sabe tudo o que leu na biblioteca do Mosteiro de São Bento e muito mais. Nada esquece? Ele garante que não. Fico assombrado e duvido um pouco. Não demora, ele entra num tema qualquer e fico besta com os movimentos de sua memória.
Quase cinquenta anos de papo e nunca vi o Polaco dar chabu. De vez em quando, vou visitá-lo no Hospital Militar. Final de 1965 ou começo de 1966. Ele, operado não me lembro bem do quê. No leito, abre o Grande Sertão: Veredas e lê para mim a primeira frase do livro, imitando a voz de um Guimarães Rosa que, na sua imaginação, fala meio desmunhecado. Em seguida, gargalha e se põe a discursar sobre a excelência daquele texto e da linguagem ali inventada. Sempre que me volta esta cena, há um corte seco para o dia do meu vestibular, eu diante da banca examinadora, prova oral de Litera¬tura. Sorteio o ponto: Guimarães Rosa. A imagem do Paulo a discursar me rola da memória e tiro uma nota alta. Têm certos dias em que ele entra em minha sala, na PAZ, agência de propaganda, e diz uma das piores frases da sua vida: “terminei de escrever o Catatau e estou com o meu potencial redacional liberado”. Mal posso acreditar que é Paulo Leminski a dizer tal coisa.
Ele parece cansado, mas quer trabalho. Então, vamos trabalhar. Vez por outra, ele aparece diante de mim com um poema e lê em voz alta, como quem diz ‘é assim que isso deve ser lido’. Vez por outra, isso me dá raiva. Mas passa tão logo, pego o papel e leio, para comprovar que aquilo é mesmo pra ser lido assim. De vez em quando, o Paulo me liga fazendo o papel de Doc Holiday e pede para falar com o xerife Wyatt Earp.
Têm dias que isso me cansa. Em outros, me encanta. Ultimamente, sem mais nem menos, ele se põe a cantarolar a canção que escreveu junto com Marinho Gallera: “Quando eu tiver setenta anos, então vai acabar esta adolescência, vou largar desta vida louca e terminar minha livre docência…”. Só quero ver.
Paulo Vitola|Revista Ideias|agosto, nº 154