Retícula sobre foto de Macaxera
Foi aí pelo inverno de 69 que a gente começou a se tratar de louco. E a enlouquecer para uma civilização que já era. Induced madness, loucura provocada, o furor como obra. No país, portas, janelas e paredes se fecham. Ultra-Direita no poder, a assassina Direita das Américas. A Inquisição computarizada arranca a verdade ensangüentada de guerrilheiros, subversivos e suspeitos, os que pegavam no pau de fogo e os que mexiam com as idéias que levam as pessoas a pegar no pau de fogo. Até segunda ordem: desativar o relógio da História, a bomba relógio da história do Brasil. Toda oposição, cortada a ferro em brasa. Todo poder à censura. Sístole. E a gente, alguns milhares de cabeludos e desbundados, a nova geração da classe média urbana, tatus, toupeiras, avestruzes, descobria a aventura interna. Na droga, uma desistência, que é repúdio, nojo,vômito.O projeto rondon da mente. As “mind guerrillas”, de Lennon. No mundo, a diástole.
Uma onda da explosão da guerra do Vietnã no coração da Metrópole, em outra galáxia, chega até nós, no terceiro mundo, eco de um eco, spagheti-western. Embaixo, no papel de alicerce, a Casagrande&SenzaIa, nosso super-ego de sempre. No cérebro, a fúria de uma tormenta química. O roque, o som pauleira, Woodstock. Aquário, o milenarismo da Nova Era. As utopias libertárias juvenis, rebentos do individualismo extremo a que chegou o homem ocidental. Cápsulas do tempo dos anos 60. O reverdecer da América. América, aqui. como sempre, os Estados Unidos. A droga fode com o tempo contábil, o tempo loteado, diagramado, avaliado em dinheiro pela burguesia que troca trabalho por salário, tempo do incenso contra o lógico tempo do relógio, fascista, leviatânico, totalitário. O Complexo de Peter Pan, may you stay forever young. Consciência III. Paz e amor: quietismo e porralouquice hippie. Ahimsa: pacifismo à Ia Gândhi, não violência.
Nirvanas escapistas, hashish e Ravi Shankar. Naturismo ingênuo, salvar as árvores e os animais selvagens, anti-capitalismo romântico. Começa a consciência ecológica. A pele, o corpo, o sensorial. A tatuagem. Flores nos cabelos. Reflexos da divino maravilhosa rebelião da juventude bem alimentada e liberalmente educada da Califórnia e de Londres, flor da lama de um mundo em adiantado estado de putrefação, barriga cheia, cabeça feita. As elitesjovens pegam Latinoamérica, Cuba, Chile, montoneros, tupamaros, todas as estações e temperaturas políticas, do Sul dos Estados Unidos à Terra do Fogo, via literatura e via livro, via música popular e via revistas, o sonho insurrecional, socialista utópico das Latinaméricas, passa, de contrabando, por entre o fogo de barragem de lixo cultural, que as multinacionais despejam, do alto de seus satélites repetidores, dentro dos cérebros das crianças da periferia do mundo civilizado. Jara, Atahualpa Yupanqui, Machu Pichu, pôster de Jimmi Hendrix e Guevara, cabeludos como os Beatles, barbudos como Fidel.
O LSD abre as portas da percepção para novas fronteiras do imaginário. Descoberta das culturas desprezadas pela civilização ocidental. Pele-vermelhas, índios mexicanos, negros, ciganos, xingu. Nem Washington nem Moscou. Tibet. Índia. Nepal. Japão. Jamaica. Bahia. Drop City. Reciclagem do lixo cultural. Astrologia. Tarot. Ocultismo. Uma segunda religiosidade reinventa os deuses que a burguesia matou, com seu materialismo míope. Misticismo, orientalismo, cultos kitsch: anti-positivismo. Gurus, koans, senseis, transmissão oral de um saber vital. A imaginação no poder. Do your own thing, fique na tua. Permissividade anárquica. Contra o horário. O salário. O emprego. A carreira. A gravata. O cabelo curto. O serviço militar. A caretice. Nos interstícios da sociedade de consumo, nas frestas da abundância das grandes cidades do Ocidente, novo tipo de homem, nômade, captor, tenta reinventar o trabalho, a sobrevivência, ávida. Cultura pop: a pequena Revolução dos Costumes, cosmopolita, da classe-média ocidental, circo para os que já estão empanturrados de pão. Uma revolução nas super-estruturas. Mas quando as super estão mais fortes. Depois da ocidentalização do Oriente, a orientalização do Ocidente: penetração de valores asiáticos e negros, desprezados pela civilização branca-cristã, nas elites intelectuais, hinduismo, yoga, macrobiótica, zen, acupuntura, artes marciais, I-ching, candomblé, meditação transcedental, soul & som, gurus, koans, toques, transmissão oral de boca a boca. Convívio e comunicação, restabelecer o contacto em profundidade entre as pessoas, destruído pela urbanização bárbara e pela competição capitalista. Sociedade alternativa. Contracultura. Contestação. A perspectiva da hecatombe nuclear.
Big Brother pintando. Protesto da vida contra o artificial e o laboratório, o absurdo abstrato da existência sob o capitalismo hiper-urbano, post-industrial: make love, not war. O pensamento mágico, analógico, sobrevive na margem, nas margens. As melhores coisas da vida são grátis. Não pode mudar o mundo? Mude você. A escolha lumpen: o lado do crime, a marginalidade. Cair fora, a estrada, a carona: até a Terra Prometida dos festivais de roque ao ar livre, days of music and understanding. A hostilidade contra as leis, as polícias e as barreiras. There’s no countries. Imagine. Acabaram os países. Power to the people. Capitalistas e operários, otários por trabalhar no horário, acreditar em guardar dinheiro, querer carro, acreditar em progresso, casar com mulher virgem, na igreja e no cartório, deixando para amanhã as boas coisas da vida, quando o melhor do mundo é aqui e agora. Hedonismo, o homem lúcido curte e brinca. O trabalho, sob o capital, é repressivo. Massifica as pessoas, números no interior das grandes organizações. Engole nossas forças, atrofiando o livre desenvolvimento das energias criativas.
A disciplina exigida pelo trabalho, dentro do sistema, abstratiza você roubando tempo, corpo, prazer e percepção. School is out forever, grita a contracultura, a escola acabou pra sempre, e soa engraçado num país que ainda não teve escola para todos. Colonizados até os ossos. O colonizado importando tudo – até a revolta contra a metrópole.
Paulo Leminski (do jornal Raposa, editado por Miran, final de 1980).