Lygia

Vez em vez, e sempre aos domingos, converso longamente ao telefone com, a quem o saudoso Caio Fernando Abreu chamava de “fada-madrinha”. Ela é, sem erro, a primeira-dama da literatura brasileira, o equivalente, para nossas Letras, a Fernanda Montenegro.

Uma quanto a outra, diga-se logo, exemplares em sua simplicidade. Não foi de outro modo domingo passado, com a diferença de que colho os seus 86 anos (!) numa azáfama invejável: Lygia às voltas com a revisão de sua obra que está sendo reeditada pela Cia.das Letras. Aliás um dos grandes acontecimentos editoriais deste ano no Brasil. De Ciranda de Pedra, o romance com que estreou em 1954, ao Conspiração de Nuvens lançado recentemente. Em nossa conversa não poderia deixar de vir à tona a tragédia que a abalou profundamente: a precoce morte do único filho, o cineasta Goffredo Neto.

E o que me causou maior pasmo: Lygia Fagundes Telles, creiam, ainda sofre a morte da mãe, ocorrida há mais de quatro décadas! Lembramos Drummond: “(…)Mãe não morre nunca/ e o filho velho embora/ ao lado dela/para sempre/ pequenino feito um grão de milho.”

A partida, sem aviso, de Goffredo, diz a escritora que só não a enlouqueceu porque salvou-se, ainda outra vez, pela via da literatura. Escreveu o belo Conspiração de Nuvens, uma (doce) miscelânea que vai de relatos de viagem a inventivos contos que só a mão – e o coração – de Lygia Fagundes Telles alcançam escrever.

Uma pergunta cai como uma gargalhada (minha) pelo telégrafo sem fio da tarde de domingo: “Ainda não estou com voz de velha?” Claro que não, respondo de pronto. E como estaria se, aos 86 anos, em seu apartamento da Consolação, em São Paulo, com fôlego de menina, revê vírgulas e travessões, adjetivos e verbos, aspas e reticências? É que, ao longo do tempo, me explica, os revisores, no afã de arrumar o “inarrumável”, descaracterizaram trechos inteiros de seus livros…

Mas surpresa mesmo foi no meio da semana quando recebi, pelo Correio, alegria de passarinho!, o romance As Meninas, um dos pontos altos da bibliografia da escritora, na que ela considera a versão definitiva. E junto, nova alegria de passarinho, o DVD com o documentário Narrarte, sobre sua vida e obra, assinado por Goffredo Neto e Paloma Rocha, filha de Glauber e uma das “noras” eternas de Lygia.

Ainda no portão, viro e reviro o pequeno embrulho, a letra redonda de Lygia. Canta num galho o sabiá de inverno. Chove uma chuva fininha a umedecer a tarde e o tempo dentro dela. Lembro, lá longe,os olhos verdes de Lygia Fagundes Telles, então casada com Paulo Emílio Salles Gomes. Me chamava de cigano. Eu só tinha 20 anos e ela aí uns 46…

24|setembro|2009

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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