© Borka
Decidi ser preconceituoso, e vou levar até o fim a minha decisão. Vou começar pelos argentinos. A partir de hoje, passarei a odiar os nossos vizinhos. Deixarei de ler Borges, comer empanadas e ouvir Piazzolla
E agora fica todo mundo falando que a gente precisa de mais amor e tolerância, de mais respeito, de mais isso, mais aquilo. Pois eu cansei. Decidi ser preconceituoso, e vou levar até o fim, com coerência, a minha decisão. Vou começar pelos argentinos. A partir de hoje, passarei a odiar nossos vizinhos. Vou sofrer, pois, para ser coerente, deixarei de ler Borges e Cortázar. Nunca mais olharei para uma charge de Quino, não comerei empanadas e não ouvirei Piazzolla. Também odiarei os judeus, e se o preço a pagar for não ouvir Bob Dylan, não ler a poesia de Robert Pinsky e Mark Strand, os livros de história de Eric Hobsbawm e Tony Judt e ignorar a existência de Marx, Freud e Einstein, fazer o quê? E preciso ser coerente.
Vou odiar os negros! Verdade, vou sofrer sem os poemas de Aimé Césaire e Amiri Baraka; jamais ouvirei novamente B. B. King, Bob Marley, John Coltrane e Miles Davis. Não sei o que farei para assistir a jogos de futebol em que negros participem, mas, se precisar, eu deixo o futebol para trás. E não pensem os árabes que eles escaparão da minha ira: vai ser difícil, eu sei, pois o pior não será ficar sem esfirra, quibe cru e As mil e uma noites. O pior será levar a vida sem utilizar os algarismos arábicos. Mas tudo bem, vou tratar de aprender a fazer conta com números romanos. Odia¬rei os gregos atuais e os antigos, e para o lixo com toda aquela bes- teirada de Sófocles, Sócrates, Aristóteles e cambada.
Africanos, eu odiarei de norte a sul, do Cairo à Cidade do Cabo, a começar por Nelson Mandela. Japoneses, vocês estão na minha lista: nunca mais comerei sushi, verei um filme de Kurosawa ou lerei um romance do Soseki. Na China o meu rancor e rompimento começa mais longe, com os poetas da dinastia Tang, como Tu Fu e Li Po, que abandonarei para sempre. Indianos, mexicanos e turcos, vocês todos serão odiados. Se o preço para odiar os havaianos for renegar o surf, eu pagarei. Ah, os americanos! A partir de hoje, que ódio eu terei deles! Nunca mais ouvirei ou lerei uma palavra em inglês nem usarei qualquer equipamento que tenha, de uma forma ou de outra, vindo de lá. O que quer dizer que eu não usarei computador, não falarei ao telefone e não viajarei de avião. Não assistirei aos filmes deles, a começar pelos do odioso Woody Allen. Sofrerei sem os poemas de Robert Creeley e Denise Levertov, mas para tudo dá-se um jeito. Tampouco suportarei a presunção dos europeus, e odiarei tudo deles, incluindo o chocolate suíço, o teatro de Shakespeare, a cerveja alemã, a literatura irlandesa, o vinho francês e a pizza italiana. Nunca mais Tolstói e Nabokov. Espanha? Não quero mais saber de Penélope Cruz. De Portugal, deixarei de lado a Teresa Salgueiro, a alheira e, principalmente, a língua. Chega dessa porcaria de português. Xz#&khswg*3tqü!
Só e feliz
Vou odiar todos os brasileiros. Não ouvirei mais Caetano e Skank, não lerei Machado de Assis, não comerei tutu à mineira. E tenho um ódio especial reservado aos ciclistas, aos pedestres e aos motoristas, independentemente da nacionalidade. Nenhuma religião escapará da minha ira, nem mesmo o meu próprio ateísmo. Também odiarei os gays, e ai de mim se eu me pegar novamente cantarolando alguma cançãozinha do Cole Porter: a autopunição, acreditem, será exemplar. E, muito especialmente, odiarei as mulheres, esses seres tagarelas, inferiores e mensalmente hemorrágicos. Nunca mais falarei com uma mulher. Nunca mais olharei para uma. Elas vão ver só o que estarão perdendo!
Chega de amor, tolerância e respeito. Se é tão óbvio que a pluralidade nada acrescentou ao mundo, por que é que as pessoas ainda ficam insistindo nessa ladainha? Como odiarei tudo e todos, ficarei só, feliz, eu comigo mesmo. Ou não. Caramba, me dou conta agora: como o preconceito, o ódio e a intolerância dominam o mundo, haverá milhões de pessoas querendo me fazer companhia. E eu, que odiarei também os que odeiam, vou ter que mandar todos à merda. Só não sei ainda em que língua.
*André Caramuru Aubert, 53 anos, historiador, editor e autor do romance A vida nas montanhas. Seu e-mail é andre.aubert@hotmail.com
Revista Trip|245