“Quando se fala em mídia – e Deus sabe quanto se fala de uma realidade de massa, proteiforme, e que vê crescer um pouco mais a cada ano sua hegemonia. Em um de seus aspectos, pelo menos, o fenômeno não deixa de ter relação com o do mercado e das tecnociências: o apelo midiático, com todos os meios misturados, assemelha-se também a um processo sem sujeito, no qual até mesmo os que nele atuam – os jornalistas, no caso – têm pouco controle”.
O conceito foi elaborado pelo escritor e jornalista francês Jean-Claude Guillebaud e está registrado em A força da convicção (Bertrand Brasil, RJ, 2007), livro dedicado a Edgar Morin, um dos mais polêmicos pensadores franceses do século 20, traduzido para o português por Maria Helena Kühner.
Amplo debate sobre as incertezas do nosso tempo, com seus paradoxos, descrenças e credulidades mais ingênuas – entre outras constatações esotéricas – Guillebaud traçou um largo perfil duma realidade que a muitos observadores sugere o desencanto e o caos.
Um dos fenômenos visíveis da época – a questão midiática – mereceu um capítulo inteiro (o sétimo), ao qual o escritor deu o apropriado título de A missa solene da mídia. Ele aborda os multiformes aspectos da imprensa escrita, televisão, rádio e internet, a seu ver uma “máquina planetária” que “obedece a mecanismos e casualidades que estão largamente fora de controle”, cujo “modo de funcionamento impõe-se até mesmo aos que acreditam, no dia a dia, comandá-lo”.
Desde a escolha da pauta, a hierarquização das informações ou o tratamento especial de um acontecimento são decididos – escreveu Guillebaud – em função de critérios, dentre os quais sobrenadam a concorrência, o impacto publicitário e a imitação, que não nascem verdadeiramente, ou apenas, da deliberação dos redatores: “Inúmeras decisões são tomadas por obra de uma pressão global cada vez mais forte”.
Assim, a influência exercida pela mídia sobre a sociedade desenvolvida nos tempos modernos, não tem precedente histórico. O quadro foi assim descrito pelo autor francês: “Da corrida pela audiência às competições publicitárias, da caça ao furo jornalístico às unanimidades no linchamento, da tirania simbólica das imagens à emotividade difusa que predomina na televisão, dos efeitos de anúncio em matéria política à transparência imposta no plano judiciário, toda a realidade social dá hoje a impressão de ser, em boa parte,reconfigurada pelo midiático”.
Guillebaud se propôs a acrescentar exemplos para tornar acessível sua dissertação: “A política não desertou apenas dos pátios universitários ou das fileiras do Parlamento para emigrar para os estúdios de televisão. Ela está sendo obrigada a submeter-se às regras de linguagem e de retórica que prevalecem na mídia (frases curtas, sedução, raciocínios simplificados, exposição pessoal, registro emocional etc). Com isso, seu próprio estatuto se viu transformado, ao mesmo tempo em que era rompido o equilíbrio tradicional dos poderes. A relação de forças entre o político e o midiático inverteu-se enormemente em benefício do segundo”.
Vale a pena citar, para efeito de ilustração, as recorrentes aparições da presidente Dilma Rousseff pedalando sua bicicleta nos arredores do palácio residencial e, mais recentemente, brincando com o neto sempre sob o registro providencial das câmeras fotográficas e de vídeo. Não é outra a intenção senão mostrar aos circunstantes a imagem de ser humano cordato e pacífico, apegado aos valores da família, igualzinho a quaisquer mortais comuns.
A ilustração prossegue ainda servindo ao caso brasileiro, à luz da assertiva de Guillebaud, para quem a justiça francesa ou brasileira, por sua vez, não foi submetida apenas à curiosidade investigativa do jornalismo. A ideia é francamente expositiva: “Ela (a justiça) viu suas regras e seu ritmo de funcionamento se modificarem por força do ‘espetáculo’, quer se trate do segredo de justiça tornado obsoleto, ou do tempo judiciário, que passou a ficar sujeito à urgência, ou à imediatez, pelo menos quando se trata de um assunto de importância e que será levado à mídia”.
O país todo está inundado pela torrente de informações espetaculosas sobre o andamento da Operação Lava Jato, já na 16ª fase de investigações sobre o Petrolão, em cujo vórtice desponta a figura implacável do juiz federal Sérgio Moro, uma espécie de reencarnação do inspetor Javert, hoje aclamado como o ícone de um poder – o Judiciário – cujo principal resgate no imaginário popular é o cumprimento da missão de investigar e punir doa a quem doer todos quantos enriqueceram ilicitamente com a prática da corrupção.
Nesse sentido, o autor nos coloca diante do fato não desprezível de que a mídia se tornou “lugar de encontros e de debates” e, ainda “esses meios não seriam mais que a ágoramoderna, na qual se interligariam ou se definiriam as relações humanas. Como tal, não seriam portadores de qualquer tipo de crença própria. A ágora midiática seria até mesmo plural por definição e agnóstica por essência”.
Publicado na França em 2005 pelas Editions du Seuil, uma evidência do prestígio intelectual do autor, o livro mostrava entretanto uma faceta que não podia ser escondida, ao se estudar o chamado fenômeno midiático regido igualmente por efeitos de crença facilmente identificáveis como fluidez, superficialidade efêmera e extraordinária fugacidade.
Segundo Guillebaud “as crenças que habitam o universo da comunicação são mutantes, imediatas, amnésicas, incapturáveis. São constituídas de sinceridades que se sucedem, de opiniões que logo se apagam, de pontos de vista aproximativos e sujeitos a revisões. É isso que faz desse império virtual um universo agitado, matizado, fosforescente e, por assim dizer, radioativo”.
As crenças produzidas pelo aparelho midiático são, hipoteticamente, provisórias, admitia o pensador francês, ao se referir aos entusiasmos imediatos e subjetividades de curto prazo e pequeno alcance. “A forma brutal com que se apresentam não consegue mascarar seu caráter ‘infinitamente provisório’. Estão indexadas, em tempo real, sobre as variações do fluxo informativo ao qual seria pouco dizer que elas super-reagem. Basta uma notícia (verdadeira ou falsa) ser dada e logo a configuração dos envolvimentos majoritários se modifica. A opinião média produzida pela mídia e seu rumor muda como mudam no mar os cardumes de peixes que o menor sinal basta para fazer subitamente virar, em bloco, de direção”, escreveu.
Uma década após a publicação de conceitos baseados em científica observação sociológica, pensando como a maioria dos brasileiros diante da volúpia demonstrada pelos agentes públicos e privados na apropriação criminosa de recursos pertencentes aos cofres de nossa maior estatal, a convicção é que esse quadro horrendo não caia no esquecimento até porque não pode e, contra isso clama a dignidade nacional, ser relegado ao compartimento de subjetividades de pequeno alcance.