Minha orelha

CapaNaRuadois

“Ora direis ouvir orelhas…”

Seja breve, diz a música de Noel Rosa. Seja longo, extenso, mas seja breve. Se você se estende demais na orelha de algum livro não ouvirão o que você quer dizer. E lembrando um ditado que trouxe de Itararé, a minha Caicó – Quem fala demais acaba dando bom dia pra cavalo.

Imagina-te, Clódia, encontrei uma mulher inimaginável, belíssima. Ela é de Caicó. Jamais pensei que uma caicoense pudesse ter tais atributos. É tudo tão longe, não é? E a gente nem sabe direito onde é Caicó. E se existe. Pois existe e muito! A mulher é inteira existente. Existe em maravilha da cabeça aos pés. Não te preocupes, mas balancei um bocado. É alta, loira, letrada! Conhece literatura de cabo a rabo. O marido, o professor Gutemberg, viajou anteontem para um lugarzinho perto daqui chamado Muriaé. Não deu outra. Já sabes. Mas a mulher tem tamanhas qualidades que fiquei tímido, lasso, brocha e despeitado. E ontem, odiento, mandei-lhe o primeiro poema aí de cima, Pois imagina-te, hoje me respondeu com o aí de baixo. Estou mal, prostrado. Manda-me algumas palavrinhas; Caicó, meu Deus! Vou comprar hoje mesmo um mapa desse Brasil bandalho. Que surpresas! Que país! Que grelos insolentes e cultivados tão de repente! Eu fedo, Clodinha? Manda-me carícias e um fio do teu pentelho. Ela se chama Líria. (Contos D’Escárnio. Textos Grotescos, de Hilda Hilst)

Fui convidado pela Nara para escrever a orelha deste livro. Pensei em começar mais ou menos assim: Assionara Souza é uma molécula, menínula sapécula que anda de biciclétula atrás das palavras, para apanhá-las pelo rabo, pela cauda, e encaixar, uma por uma, no cotidiano dos seus personagens, que sempre existiram, e ela as usa na medida exata, na rua, aqui, ali e em todo lugar, sempre, sem tirar nem por.

Assionara mencionou que eu podia ser sincero, apesar da difícil função de escrevinhador de orelhas. Enfim, escrevo esta orelha de ouvido, porém atento ao que ela manifestou em seus livros, que sempre leio bem-humorado, apesar de ser um sujeito já nem tanto. Não é meu hábito tecer loas a ninguém, que fique bem claro. Também não acredito que o curitibano “só fala bem dos outros pelas costas”.

Ela confessa ter matado aula na graduação para continuar lendo Contos D’Escárnio, Textos Grotescos, de Hilda Hilst, citado acima, justamente pela cidade de Caicó, no Rio Grande do Norte, onde nasceu Assionara.  Bom pra ela e ótimo para nós. Quando deixamos de fazer coisas obrigatórias, acabamos fazendo o indispensável. Caicó é aqui e agora, tão perto de nós.  A vida tira as pessoas de Caicó, mas nada tira Caicó das pessoas.

Nara é doutoranda em Estudos Literários pela UFPR e adotou Curitiba para viver, para nossa alegria e felicidade.  De fala mansa e gentil, essa menina descarta o desnecessário e mostra que o excesso não faz falta, quando o simples, exatamente o simples, pode explicar tudo. Assim são as imagens e sugestões na literatura refinada e na poesia da escritora.

Como cartunista e humorista, acho Assionara uma graça, divertida, bem-humorada, mesmo nos momentos melancólicos, na riqueza da tristeza e, usando o meu pleonasmo preferido “Se não for divertido, não tem graça”, confesso que quando as descobertas de Asssionara me espantam, pergunto: Por que eu não pensei nisso antes?

Creio que até os bilhetes, a lista de compras de supermercado, a agenda de compromissos e as anotações dela sejam obras literárias, minuciosas, encantadas, escritas por alguém que não tem pressa, como as pessoas que, quando viajam, prestam atenção nos detalhes do percurso, sem se importar com o tempo pra chegar lá.

Nós não temos nada. Só aquilo que nos falta. Isso acontece quando passeamos por nossas memórias e, como Nara, trazemos debaixo do braço histórias pessoais com a leitura de Na Rua, cuidadosamente pensado, escrito como o pão nosso de cada dia, trazido de alguma tarde de nossa infância. Alguém já disse que escrever é observar atentamente os pormenores da realidade, como um sonho, sabendo escolher a gota da chuva que vamos esconder na nossa caixinha de inutilidades, para lavar a alma, numa tarde qualquer.

Essa menina de Caicó agora faz parte do Condomínio da Palavra, criado por Luiz Carlos Rettamozo, uma das antenas da raça (no meu caso, da roça) de Curitiba.

Na Rua: A Caminho Do Circo, encontrei um Pequeno Elogio à Loucura:

 O Louco

O Louco veio aqui hoje. É possível ainda senti-lo, ele está aqui, próximo. Bem próximo. O cheiro do Louco é esverdeado. Sempre que ele está por perto as mãos fogem para junto do rosto. Colam-se às faces e os olhos se esbugalham espantados com a sua presença. À volta dele, os pés se perdem a andar sem destino. Não há água que amenize a sede do Louco. Não há silêncio que sufoque a massa de vozes que se avolumam no centro denso dos pensamentos. O Louco é preciso. Vale-se de uma única palavra e penetra o ínfimo ânus desta uma até que ela se dilacere e se ponha a supurar. Ninguém pode com o Louco. Ele monta feito cavalo morto às costas de quem o resiste e, mesmo perto do sono chegar, acende a lâmpada da insônia que se farta em goles grandes do desespero líquido até que se rompa a tênue luz da manhã.

Então, Nara? Satisfeita? Creio que a encomenda foi entregue, não? Agora, temos que ir.

(Esta foi a orelha que escrevi para “Na Rua”, de Assionara Souza (1969|2018), editora Arte & Letra. Não pude ir no lançamento e, ironia do destino, não tenho o livr0). Tenho certeza que Assionara ainda vai encontrar um exemplar pra mim, onde estiver. Sem fumar, espero.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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