Rui Werneck de Capistrano

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Foto de Daniel Snege

De cara, já digo que nunca fui amigo do Jamil. Por falha minha ou dele, sei lá, nunca fomos próximos. Habitávamos os mesmos planetas da literatura e da propaganda, mas não havia contato imediato. Ele sempre me pareceu meio afastado das rodinhas de boteco e, na década de setenta, os encontros de publicitários e jornalistas eram sempre nos botecos. O máximo de aproximação que tive com o Jamil foi por uma ou duas semanas, quando entrei na agência de propaganda Múltipla, em 1977, na rua da Glória. Era a agência onde todos queriam trabalhar. Eu, idem. E fui convidado pelo Desidério. A Múltipla sempre foi exemplo de agência, não só pra mim, mas pra todos. Trabalhar lá dava status. Sei que fui.

A turma de criação da agência contava com o Desidério, o Gil, o Ernani Buchmann, o Néslio Pinheiro, o Jamil Snege, o Bira Menezes, a Margareth Born e eu. Era um time da pesada, excetuando-se eu que ainda estava verde se fosse confrontado com os outros. O Bira, a Margareth e eu formávamos um trio de criação. A elite, lá de cima, atendia clientes especiais e nós, lá de baixo, atendíamos os menores. O Bira e eu tivemos a sorte de fazer uma campanha que deu o que falar. O cliente era uma olaria que fabricava tijolos de alta qualidade. Eu dei o nome de João-de-barro pra ele e pegou. O cliente vendeu tanto que teve que vender a própria olaria e a conta foi embora.

Mas preciso contar de uma boa que aconteceu. Eu ocupava, por falta de espaço, a mesma sala do Jamil. Era uma sala pequena com duas mesas e duas máquinas de escrever. Logo que entrei, o Jamil parece que não estava muito contente. Algum estremecimento entre ele e os donos. Aí, caiu pra ele destrinchar um job de um cliente que produzia vinho lá no Rio Grande do Sul. Ele tinha que fazer rótulo, folheto, anúncio. E mais outras coisas de que não me lembro. Sei que ele colocou papel na máquina e metralhou. Só que ele ria a cada momento. Ria, olhava pra mim, cofiava a barba e metralhava. Estava se divertindo. Como já disse, eu não tinha intimidade com ele. Ele sempre me pareceu muito superior. Já tinha bagagem literária de algum peso. O Desidério ligava pra ele perguntando do job. Ele respondia qualquer coisa, tornava a metralhar, rir e cofiar a barba. Aí, depois de algum tempo, tirou o texto final da máquina e me mostrou. O que eu achava? Li com atenção, só que não entendia nada. Ele fez um texto totalmente nonsense! Bem do tipo surrealista, contando uma história hilária do vinho. Eu, como publicitário seminovo, achei estranho. Não sabia o que ele queria dizer com aquilo. Aí, ele chamou o Desidério e entregou o texto, bem sério. O Desidério tinha o costume de ler em voz alta. Imagine o que aconteceu… Ele ia lendo e fazendo cara de quem tinha comido algo azedo. O Jamil seguia bem sério. O Desidério terminou de ler. Disse um bom meio de canto de boca e saiu levando o texto. O Jamil só cofiava a barba. Quando o Desidério sumiu, ele deu uma gargalhada de três tempos, meio forçada. Pouco depois, o Desidério chamou o Jamil pra ir conversar.

Na volta, ele me disse que estava saindo da agência. Eu estava tão apreensivo que nem imaginava ser pura gozação. Um texto-suicida. Fiquei na Múltipla até o cliente maior quebrar e cair em cima de todos: Móveis Cimo.

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Rui Werneck de Capistrano não é bobo nem nada

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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