Um soco no ouvido da freira carmelita

A tempestade lá fora aviva tudo o que se move: árvores vergadas ao chão. Schopenhauer ancora a barca Nautikon a um tronco de carvalho e retorna ao Hotel Sunset Boulevard, senta no parapeito do terraço que dá para o mar grosso e franze a testa. O médico lhe deu a notícia dolorosa: só dois dias de vida. Lythia, abalada com o câncer do marido, deita sob o guarda-sol para descansar. Ela, após alguns minutos, lembra a Schopenhauer que não somos nada, nunca fomos nada, e que, apesar disto, podemos guardar na memória todos os jarros de luz que o sol esqueceu à porta dos amantes.

Schopenhauer retorna à varanda deste hotel, à visão do mar. Esqueceu o costume de fazer discursos e, afastando com o gesto a mosca, volta a encarar sem esforço as ondas de salgada branca espuma, as ondas que se destroçam na pedra feito louças. Schopenhauer medita e decide: vai dar um passeio pelo bosque vazio nos arredores da Pacific Coast Highway e assassinar, com soco no ouvido, uma freira carmelita.

No meio do bosque vazio, nesta voltáica cidade de Los Angeles, Schopenhauer encontra a freira. Quando vai desferir o soco, ela reage:
— Agora não; você está muito cansado –, e crava um peixe nos ombros de Schopenhauer; um peixe que se debate de forma violenta.
— Você conhece este peixe? – pergunta a carmelita.
Schopenhauer responde que não. O arpão de um raio acerta a nuca de Schopenhauer, que não morre, antes mistura vocábulos próprios e alheios, paisagens de toda sorte, e ele pergunta a si mesmo como é que um homem, que ia morrer dali a dois dias, podia tratar tão friamente uma freira carmelita, a ponto de querer assassiná-la com soco no ouvido?

Sim, Schopenhauer retorna ao Hotel Sunset Boulevard e encontra Lythia que, ainda sob o guarda-sol, folheia o Livro dos Mortos — o Bardo Todol — que diz que, alguns dias após a morte, tudo em nós vira vento e a primeira coisa que vemos é um cavalo, também de vento, e Lythia percebe que o Schopenhauer que se aproxima não conseguiu matar a freira carmelita e ainda trouxe um peixe cravado nos ombros, um peixe que não pára de se mexer.

Schopenhauer pergunta:
— Quanto tempo ficaste ao sol hoje, Lythia?
Lythia responde, espreguiçando-se:
— Há milênios, milênios.
Uma sombra desce ao rosto de Schopenhauer sempre que recorda o prognóstico do médico que lhe disse:
— Só dois dias de vida, meu senhor, só dois dias.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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