Aforismos

isadora-duncan Isadora Duncan.

Está no Aurélio, vulgarmente conhecido por “pai dos burros”. Aforismo – do grego aphorismós e do latim aphorismu – é uma sentença moral breve e conceituosa. Também encontrada por aí pelo codinome de apotegma, máxima, esta forma de expressão literária é parente dos provérbios, ditados e sentenças, de cunho mordaz e quase sempre temperada com humor cáustico.

E tem parente pobre por aí, as “frases de para-choques de caminhões”. Como se vê, poucos resistem a um aforismo, mas como em tudo, poucos se dão bem na hora de fazê-lo.

Alguns aforismos são eternos; outros ficam fora de moda. Mas ninguém fala em aforismo sem falar em sujeitos como Karl Kraus que elevaram o status deste gênero.

E agora surge boa oportunidade. Está saindo Aforismos (Arquipélago, 208 páginas, capa dura, R$ 39,00). Vamos falar, antes, do sujeito. Kraus é considerado um dos maiores escritores satíricos em língua alemã.

Era de ascendência judaica, natural da Boêmia, região que hoje compreende a república Checa, mas que integrou o influente império Austro-Húngaro, esfacelado ao fim da primeira grande guerra mundial.

Durante quase 40 anos Kraus foi o único redator de uma revista satírica chamada A Tocha (Die Fackel), publicada em Viena, capital do dito império e depois da Áustria, para onde o escritor se mudou ainda na infância.

Havia uma edição brasileira dos aforismos de Kraus dos anos 80 (Ditos e Desditos, tradução de Márcio Suzuki e outros, Brasiliense, São Paulo, 1988). A mais recente é caprichada e completa – além de Ditos e Desditos (Contraditos nesta tradução) inclui também Pro Domo et Mundo, De Noite e glossário alfabético de nomes, lugares e expressões estrangeiras. Para quem gosta, prato cheio. A leitura do livro provoca reações diversas.

Kraus é reconhecido, mas alguns de seus aforismos parecem empoeirados – como os que abordam verbetes sobre mulheres e sexualidade. É uma cabeça do século 19 entrando no século 20.

No que se refere à mulher, às vezes parece um troglodita e não intelectual. A culpa não é tanto do cara, quanto de seu tempo em que a mulher não pegava pesado no batente externo como os homens, especialmente as de classe média e da nobreza. Eram fúteis. E belas.

Havia muito trololó e conversas de salão. Hoje não há tanto espaço para mulheres fúteis, embora sempre existam algumas por aí, hoje a mulher é tão produtiva quanto o homem.

Mas Kraus se divertiu escrevendo coisas como “na alegria e na tristeza, por fora e por dentro, em qualquer situação, a mulher precisa do espelho”. Um verbete que hoje em dia pode se aplicar tanto a mulher quanto a muitos homens.

O mundo mudou e o aforismo mofou. Há outros constrangedores. Mas, ele também acerta como neste caso: “Eles (os homens) tratam uma mulher como se fosse um refresco. No entanto, não admitem o fato de as mulheres sentirem sede”. Este além de sutil, como mandava o figurino da época, ainda é atual.

Kraus conseguia ser engraçado em outros: “À noite todas as vacas são pretas, mesmo as loiras”. Ou sarcástico: “Visto que é proibido por lei ter feras selvagens, e os animais domésticos não me dão prazer algum, prefiro continuar solteiro”.

Sobre Heine, grande poeta e jornalista alemão, Kraus observou. “Heinrich Heine afrouxou tanto o espartilho da língua alemã que hoje qualquer caixeiro pode passar a mão em seus seios”.

A respeito de um retrato feito pelo pintor expressionista Kokoschka, disse: “Ele fez um retrato meu. É possível que aqueles que me conhecem não me reconheçam. Mas aqueles que não me conhecem me reconhecerão”. Observação adequada a quase todos os retratos imprecisos dos pintores expressionistas.

No caso de Kraus a sutileza embora apareça aqui e ali não era necessariamente um requisito. O que importava era acertar o golpe. E como ele trabalhava com material jornalístico, a coisa ficava datada, embora com eventuais floreios.

O que não ocorreu a outro grande produtor de aforismos como o americano Henry Louis Mencken. Mencken, seis anos mais jovem e longevo – viveu até 1956, enquanto o austríaco parou de respirar em 1936 -, acertava golpes ligeiros no alvo, com mais humor.

Algumas de suas frases circulam pelos Estados Unidos como produtos da sabedoria popular, enquanto não passavam de produto da sabedoria de Mencken.

Eis uma estripulia do cara: “O homem detesta os parentes de sua mulher pela mesma razão de que não gosta de seus próprios, ou seja, porque eles lhe parecem grotescas caricaturas daquela por quem ele tem respeito e afeição, ou seja, sua mulher. De todos eles, a sogra é obviamente a mais repugnante, porque ela não apenas macaqueia sua mulher, mas também porque antecipa o que sua mulher provavelmente se tornará”.

Os aforismos de Mencken eram tão insuportáveis – para os ofendidos, claro -que foram traduzidos e reunidos no Brasil num volume com o título de O Livro de Insultos de H. L. Menckeb (Companhia das Letras, tradução de Ruy Castro, 1988).

No Brasil nós temos um similar que bebeu na fonte do melhor dos romanos – Juvenal. Millôr Fernandes, figura ímpar, por certo indagaria o significado exato da expressão “figura ímpar”, se afinal ímpar tanto pode ser 1, quanto 33 ou 973.

Millôr seria talvez o mais qualificado produtor de aforismos do planeta não fosse o fato dele ser brasileiro. Ele é menos agressivo e mais ágil, às vezes mais elegante, talvez por isso mais letal.

E diz coisas como: “Vê-se que os editorialistas de nossos grandes jornais pensam pelo menos duas vezes antes de dizerem absolutamente nada’. Ou irônicas como ‘tome pílula e seja você mesmo uma mulher inconcebível”.

Os aforismos de Millôr são um milagre da anatomia: quase sempre curtos, vão fundo. Existem autores de aforismos que se sentiriam ofendidos se chamados de autores de aforismos, porque reverenciados como grandes dramaturgos.

Um deles é Oscar Wilde. Que dizia: “A vida é muito importante para ser levada a sério”, “as mulheres existem para que a amemos, e não para que a compreendamos” ou “a cada bela impressão que causamos, conquistamos um inimigo. Para ser popular é indispensável ser medíocre”. Wilde era dublinense, como Bernard Shaw, grande dramaturgo. E também autor de frases ferinas.

Shaw dizia: “O especialista é um homem que sabe cada vez mais sobre cada vez menos e, por fim, acaba sabendo tudo sobre nada”. Um verdadeiro nó no raciocínio.

Ou: “Quando um homem quer matar um tigre, chama isso de esporte; quando o tigre quer matá-lo, chama isso de ferocidade. A distinção entre crime e justiça não é tão grande”.

A agilidade mental é a máquina de afiar aforismos. A bailarina americana Isadora Duncan chegou para Shaw e disse: “Nós poderíamos ter um filho. Com a minha inteligência e sua beleza, seria um filho perfeito”. Shaw emendou: “Melhor não arriscarmos. Ele pode nascer com a minha beleza e com sua inteligência”. E assim por diante.

Em comum, estes autores de frases espirituosas e muitas vezes espinhosas, com exceção de Oscar Wilde, eram jornalistas. Não jornalismo de cobertura de eventos, mas um tipo que não se encontra mais e que no Brasil teve no hebdomadário carioca O Pasquim um de seus melhores exemplos.

O jornalismo satírico, de crítica, que entra na contramão dos aduladores dos poderosos. Só por esta razão vale à pe na ler os sujeitos que os escreveram como Kraus, Shaw, Millôr e outros. É, também, uma chance de aprender um pouco com eles, como se coloca alguns tipos em seus devidos lugares sem descer das tamancas.

Edilson Pereira (O Estado do Paraná, 2010)

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
Esta entrada foi publicada em Sem categoria e marcada com a tag . Adicione o link permanente aos seus favoritos.
Compartilhe Facebook Twitter

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.