Foto de Benoît Debie
Como você já deve ter ouvido falar, o novo filme de Gaspar Noé, “Love”, tem várias cenas de sexo real. E muita gente que não se considera pudica descartou o título como pornografia mascarada de filme de arte. O que eles não percebem é que, apesar de sexo explícito na tela chocar o público norte-americano, isso não está fora da norma no circuito de festivais – cujas paradas mais importantes se concentram, não por acaso, na Europa.
Na minha opinião, parece que um número considerável de películas de sucesso tem utilizado a técnica nos últimos anos: “Ninfomaníaca”, “Uma Estranha Amizade” e “Um Estranho no Lago”, só para citar alguns. A maior parte desses filmes, claro, foi produzida fora dos EUA e teve um lançamento limitado aqui. (Na maioria das vezes, o status de “Ninfomaníaca” e “Love” como produtos deliberadamente de nicho permite que as equipes de marketing brinquem com seu conteúdo subversivo através de cartazes sugestivos ou simplesmente NSFW.)
Love pode ser o mais novo membro dessa turma, mas está longe de ser o primeiro. A fim de se preparar para a provocação em 3D de “Noé” – que, é meu dever comentar, não vale tanto seu suado dinheirinho como “As Maravilhas”, que também estreou na semana passada -, vamos dar um passeio pela história das cenas de sexo mais transgressoras do cinema.
Um dos primeiros exemplos é “Canção de Amor”, um filme francês de 26 minutos feito em 1950. Famosa por seu enredo voyeurista, essa obra de Jean Genet mostra um carcereiro que se excita vendo um detento se masturbar e, depois de uma pequena desavença com o tal punheteiro, faz o prisioneiro chupar sua arma. O filme foi proibido não só pelas cenas explícitas como também pelas conotações abertamente homossexuais, o aspecto mais problemático para muitos. Em parte por causa dessa polêmica, Genet nunca mais dirigiu uma película.
Nas décadas seguintes, vários outros filmes europeus seguiram o exemplo, seja na Dinamarca (“Gift”, 1966), Alemanha Ocidental (“Das Stundenhotel von St. Pauli”, 1970) ou Suécia (“Dom kallar oss mods”, 1968). Esse último, “They Call Us Misfits”, em inglês, esteve perto de ser censurado até que o ministro da educação se envolveu no caso. A Escandinávia realmente dominou esse mercado por um tempo, com esses longas-metragens (sendo os mais conhecidos os que compõem a série em sete partes “Zodiac”) essencialmente recebendo o tratamento normal: críticas nos jornais e apenas alguns casos de censura ou proibição. Jens Jørgen Thorsen, que adaptou “Dias de Paz”, um livro de Henry Miller, em “Clichy” sem deixar de fazer jus à fonte ao apresentar sexo hardcore, quase recebeu apoio oficial do Instituto de Cinema Holandês para seu filme seguinte – até que o Papa Paulo 6º protestou contra o conteúdo blasfemo.
Mas os americanos não foram tão compreensivos. Como por muitas outras coisas, temos de agradecer John Waters por trazer cenas reais de sexo oral para as telas norte-americanas. Pink Flamingos, além de fazer de Divine uma heroína cult por gerações, foi proibido em lugares geralmente mais mente aberta como Austrália, Noruega e Canadá. Quando o filme foi relançado nos EUA em 1997, em comemoração ao seu aniversário de 25 anos, a MPAA (Motion Picture Association of America) deu ao título a classificação NC-17 em desaprovação. Fora a coisa de comer cocô de cachorro, eles não gostaram do close de Divine fazendo um boquete de verdade. Quem diria, né?
Talvez o caso mais respeitado de sexo real nos filmes seja “O Império dos Sentidos”, um longa japonês que só foi feito por ter sido oficialmente reconhecido como uma produção francesa. Nagisa Oshima vem recebendo elogios e críticas na mesma medida em toda sua carreira, mas ambos se devem principalmente a esse filme. A natureza explícita do título desencadeou censura nos EUA, Inglaterra, Canadá, Portugal e em seu país natal, entre outros. O título também tem a distinção de estar na Criterion Collection com o aviso “ATENÇÃO: ESSE FILME É SEXUALMENTE EXPLÍCITO”.
Considerado não tão artístico assim, temos “Calígula”, com seus excessos que continuam sendo lembrados pelas razões erradas. Provavelmente a produção mais cara da lista (US$ 17,5 milhões em 1979), o filme apresenta uma orgia extensa, além de várias outras cenas de sexo real. Al Pacino e William Friedkin entraram para a lista um ano depois com “Parceiros da Noite”, em que Pacino faz um policial disfarçado que investiga uma série de assassinatos na cena gay de Nova York. Muita da ação real acontece no fundo das cenas, porém isso não é difícil de notar. Friedkin fez um excelente trabalho destruindo a reputação que construiu com “Operação França” (que lhe deu um Oscar) e “O Exorcista” dirigindo “O Comboio do Medo”, seu longa subestimado de 1977 sobre um grupo de vagabundos transportando uma carga altamente volátil de nitroglicerina pela América do Sul em grande caminhões. “Parceiros da Noite” também não ajudou muito nessa questão.
Entretanto, nenhum desses diretores tomou uma decisão tão questionável quanto Vincent Gallo em “Brown Bunny”. Essa obra polêmica atinge o clímax quando o protagonista, interpretado pelo próprio Gallo, recebe um boquete de Chloë Sevigny (sua ex-namorada na vida real). O título foi atacado em sua estreia mundial em Cannes em 2003, o que desencadeou uma briga entre o diretor e Roger Ebert, que considerou esse o pior filme já exibido no festival. Gallo respondeu chamando o crítico de gordo; Ebert, por sua vez, respondeu parafraseando Churchill; Gallo então jogou uma maldição no intestino de Ebert; e o crítico disse que assistir ao vídeo de sua colonoscopia era mais divertido que ver “Brown Bunny”. Ponto para o Ebert.
Nem todo mundo foi tão indelicado (e mesmo Ebert respondeu favoravelmente a uma versão mais curta e reeditada), embora “Brown Bunny” continue a ser definido por aquela cena – o que provavelmente é o maior argumento contra a exibição de sexo explícito em filmes. Isso acaba se tornando uma distração. O verdadeiro desafio é não deixar que esse aspecto molde o legado de uma obra.
Quanto ao que o sexo explícito tem a acrescentar ao cinema, vejo isso como todo o resto: depende do filme em si. “Uma Estranha Amizade” é um dos melhores exemplos recentes: a história de Sean Baker sobre uma atriz pornô morando e trabalhando em San Fernando Valley se beneficia das tomadas inteligentemente editadas da personagem em ação. (Como Lars von Trier fez em “Ninfomaníaca”, Baker também optou por usar dublês de corpo nessas sequências.) Quando funciona, isso parece incidental ao enredo, mas é essencial para o tom geral. Não há a questão de valor de choque ou exploração. Ou seja: o sexo serve à narrativa, não ao diretor. Tradução: Marina Schnoor.
Michael Nordine, da Vice – Folha de São Paulo