Li os livros Contrafogos e Contrafogos 2 pouco depois de terem sido traduzidos para o português e publicados no Brasil por Jorge Zahar Editor (RJ) em 1999 e 2001. Além de vasta bibliografia ambos foram escritos pelo sociólogo Pierre Bourdieu (1930-2002), que entre os anos 1982 e 2001 foi professor do Collège de France e durante muito tempo diretor do Centro Europeu de Sociologia da mesma instituição, fundado por Raymond Aron, no qual se notabilizou como festejado pesquisador de ciências sociais.
Numa releitura do segundo volume que enfeixa oito ensaios assinados por Bourdieu na virada do século, quando a consolidação de um autêntico Estado Europeu estava no auge e a todos parecia definitiva assim como a marcha da globalização, quinze anos depois é oportuno reavaliar o grau de meticulosidade e acertos do sociólogo francês, cujo resíduo de equívocos é tão reduzido que nem de perto reduz a clareza de suas incursões intelectuais em política, economia e sociologia.
Em conferência proferida na cidade de Zurique (Suíça) em maio de 2000, publicada sob o título A mão invisível dos poderosos, Bourdieu dizia que os dominantes do jogo econômico eram “dominados pelas regras do jogo que dominam, as do lucro”, enfatizando que “esse campo funciona como uma espécie de máquina infernal sem sujeito que impõe sua lei aos Estados e às empresas”.
Nas empresas, segundo Bordieu, “é também a busca do lucro a curto prazo que orienta todas as escolhas, sobretudo a política de recrutamento, submetido ao imperativo da flexibilidade – e da mobilidade (com o recrutamento sobre contratos a curto prazo ou de base temporária), a individualização da relação salarial e a ausência de planejamento a longo prazo, particularmente em matéria de mão de obra”.
A conclusão do pensador europeu, decorridos apenas quinze anos parece ter-se transplantado com casca e tudo para o Brasil: “Com a ameaça constante do ‘enxugamento’, toda a vida dos assalariados está colocada sob o signo da insegurança e da incerteza”.
Também não poderia ser diferente a influência da globalização, fenômeno que se comportou como um tsunami que arrebentou fronteiras especialmente nos países ocidentais, vazando igualmente para os chamados Tigres Asiáticos e outras economias então periféricas, a ponto de inviabilizar o sistema anterior que “garantia a segurança do emprego e um nível de remuneração relativamente elevado que, alimentando a demanda, sustentava o crescimento e o lucro”.
Na Europa do início do século as coisas haviam mudado radicalmente e não custaram a desembarcar em Pindorama com a segurança de quem veio para ficar. Bourdieu resumiu o enredo da seguinte maneira: “O novo modo de produção maximiza o lucro reduzindo a massa salarial pela compressão dos salários e pelas demissões, o acionista preocupando-se apenas com as cotações da Bolsa de que depende seu rendimento nominal”.
Com o desemprego ameaçando chegar a índices dramáticos em face da recessão da economia, o Brasil da metade da segunda década do século, como a Europa do ano 2000 não conseguiu sustar a chegança de “um regime econômico que é inseparável de um regime político, um modo de produção que implica um modo de dominação fundado na instituição da insegurança, a dominação pela precariedade: um mercado financeiro desregulamentado favorece um mercado de trabalho desregulamentado, portanto um trabalho precário que impõe a submissão dos trabalhadores”.
Subproduto indesejável do modelo imposto pela globalização no mercado de trabalho é a dispensa massiva de trabalhadores, aliás, já punidos pelo emprego de baixa qualidade. Bourdieu lembrava no contexto europeu “os empregos subalternos de serviços, sub-remunerados, de fraca produtividade, não qualificados ou subqualificados (apoiados numa formação acelerada dentro da massa), e sem garantia de carreira, em suma os empregos supérfluos de uma sociedade de serviçais”.
O sentimento geral é de instabilidade, inclusive em termos previdenciários, pois não se vislumbra da parte dos poderes constituídos da República, especialmente do Executivo, preocupação deveras fundada em padrões de absoluto respeito e valorização dos que um dia entrarão na aposentadoria. Se é que vão chegar lá…
Hoje trava-se uma luta entre o governo e as centrais sindicais, apoiadas pelos partidos ditos socialistas em torno da reforma previdenciária, ora discutida no Congresso. O governo pretende fixar idade mínima para a aposentadoria e não abre mão do chamado fator previdenciário pelo qual se chega ao cálculo do valor a ser recebido pelo trabalhador aposentado.
Numa outra vertente estribada em fatos estudados na virada do século, o investigador identificava um efeito da globalização denominado de política de despolitização, descrita como a “política que bebe desavergonhadamente no léxico da liberdade, do liberalismo, da liberalização, da desregulamentação”, visando conferir e liberando de todos os controles “o predomínio fatal aos determinismos econômicos”
Mesmo considerando certo exagero na formulação que Bourdieu enunciava há quinze anos – hoje a situação é mais grave em determinados países – é preciso admitir que a política da despolitização é um derivativo do “poder dos agentes e dos mecanismos que dominam atualmente o mundo econômico e social”. Lembremos que no início do primeiro mandato de Lula apareceu a Carta do Povo Brasileiro, mediante a qual o governo assumia o compromisso de honrar todos os contratos com o mercado. Assim como o Banco Central na época foi confiado a Henrique Meirelles, executivo do mercado financeiro internacional, no segundo mandato Dilma chamou o neoliberal Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda, gerando inteiro desagrado de algumas tendências ideológicas acolhidas pelo Partido dos Trabalhadores.
Se Bourdieu estivesse vivo e tratasse, mesmo superficialmente de temas brasileiros, decerto aplicaria a fórmula usada para definir os contratempos vividos pela União Europeia, hoje confrontados pela Grécia, Espanha e Turquia, entre outros: “O poder dos agentes e dos mecanismos que dominam atualmente o mundo econômico e social repousa em uma concentração extraordinária de todos os tipos de capital, econômico, político, militar, cultural, científico, tecnológico, fundamento de uma dominação simbólica sem precedente, que se exerce, sobretudo, através das mídias, elas próprias manipuladas, não raro à sua revelia, pelas grandes agências internacionais e pela lógica da concorrência que as impõe”.
O Brasil está imerso num paradoxo político e econômico, com visíveis desdobramentos na esfera social. O governo se proclama defensor dos ideais da socialdemocracia (afinal o PT é um partido de centro-esquerda com essa marca), mentor da Pátria Educadora – algo que até agora ninguém foi capaz de definir – e comprometido com programas sociais como o Bolsa Família, Minha Casa, Minha Vida, Pronatec e Fies. Entretanto, a política econômica iniciada com a proposta de rigoroso ajuste fiscal está nas mãos do ministro Joaquim Levy, segundo se propala indicado para o cargo pela alta direção de poderosa organização bancária.
O PT e os demais partidos da aliança, entre eles o velho e fisiológico PMDB, mais do que nunca de olho nos desdobramentos da crise e afiando as garras para se apropriar do provável espólio, torcem o nariz para o estado mínimo desenhado por Levy.
Contrafogo, segundo os dicionários, é o fogo ateado ao encontro de um incêndio florestal para impedir sua propagação. Bourdieu foi uma das vozes mais respeitadas no ambiente europeu no período em que a crença no neoliberalismo econômico e sua influência sobre a política eram o prato do dia.
A permanência do PT no governo chegou ao quarto mandato presidencial, embora o país não tenha conseguido até agora construir o modelo ideal para fomentar um crescimento econômico igualitário e justo para a maioria da população. Haja contrafogo!
*Esse artigo foi publicado em 17 de junho de 2015