Dias depois da morte de Juscelino Kubitschek o presidente Ernesto Geisel recebeu uma carta de um coronel zangado. Ele dizia:
“Estamos assistindo a ‘choradeira’ nacional pela morte de JK, muito bem urdida e explorada pelos comunas e seus eternos aliados irresponsáveis. (…) O que é mais triste, prezado amigo, e disto discordo, é ver-se o governo decretar luto oficial por três dias.”
JK tivera um funeral apoteótico e Geisel contrariara a opinião do seu ministro do Exército, decretando o luto. O presidente tinha horror a Juscelino e anos antes participara da decisão que cassou seu mandato de senador, banindo-o da vida pública por dez anos. Geisel anotou na carta do coronel:
“O lamentável é que as provas não eram provas de qualquer valor jurídico. Na realidade, eram indícios, embora todos soubéssemos da ladroeira consumada. Eu penso que não houve, nem haveria condenação.”
O símbolo da “ladroeira” era um apartamento no edifício Ciamar (Avenida Vieira Souto, 206, o mesmo onde viveria Caetano Veloso).
Como chefe do Gabinete Militar da Presidência e secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional, Geisel acompanhara o inquérito que investigou o caso do apartamento. As acusações eram duras. Sem concorrência, JK entregara a construção de uma ponte unindo o Brasil ao Paraguai a um consórcio de empreiteiras (Sotege-Rabello). Os empreiteiros seriam responsáveis pela construção do edifício Ciamar e também por benfeitorias feitas num terreno que o governo paraguaio doara a Juscelino na região de Foz do Iguaçu.
Quem passava pela Vieira Souto e via “o apartamento do Juscelino” decidia que JK era corrupto e seu governo, uma “ladroeira consumada”. Afinal, fora substituído por um político que fez da vassoura o símbolo de sua campanha. O ex-presidente foi proscrito por uma ditadura que tinha como objetivo afastá-lo da sucessão presidencial de 1965. A corrupção era um pretexto.
O eixo empreiteira-apartamento-presidente ressurgiu com as conexões em que se meteu Lula. O tríplex do edifício de Guarujá reencarna o da Vieira Souto e Nosso Guia, como JK, pode ser candidato à Presidência. Para quem não gosta dele, como para quem não gostava de Juscelino, não há o que discutir: é a “ladroeira consumada”. Felizmente, a ditadura se foi e restabeleceu-se o Estado de Direito. Nele, acusação não é prova e a condenação depende do respeito ao devido processo legal.
O tríplex de Guarujá está sendo tratado de forma semelhante ao apartamento de JK. Um promotor de São Paulo acredita que já juntou provas para comprovar a malfeitoria de Lula. O núcleo de investigadores da Lava Jato, menos espetaculoso, vem buscando a conexão da maracutaia a partir dalavanderia de dinheiro de uma offshore panamenha. Tomara que feche o círculo.
Metamorfose ambulante, Lula diz que não é dono do tríplex e que desistiu dele em novembro passado. Também não tem nada a ver com o sítio de Atibaia. Acredita quem quiser. Certezas, cada um pode ter as suas; sentenças, só a Justiça produz. O papel do Ministério Público e do Judiciário é o de trabalhar em cima de provas, porque se essa porteira for aberta, não se derretem apenas os direitos de pessoas metidas em “ladroeiras consumadas”, derretem-se os direitos de todos.
O edifício Ciamar foi rebatizado e hoje se chama JK.
Elio Gaspari – Folha de São Paulo