Adriana Sydor – © Lina Faria
Quem diria que a frase que Ivan Lessa mandou para a ditadura militar da segunda metade do século passado, ainda atravessaria as décadas fazendo tanto sentido? Quando o lema “Brasil, ame-o ou deixe-o” chegou aos ouvidos do jornalista, ele prontamente respondeu: “O último a sair apaga a luz do aeroporto”. Era insuportável o Brasil daqueles tempos e Lessa se mandou para Inglaterra para ver de longe as barbaridades verde-amarelas.
Hoje, a frase só não é literal para mim porque para sair deste enrosco-democrático-bananão é preciso muito mais grana que em outros tempos. E também porque, bem ou mal, podemos todos em coro ou individualmente, em casa ou na rua, no Facebook ou na saída de um restaurante, falar sobre o que incomoda. Podemos até, veja só, vestir camisetas da seleção brasileira (aquela que o Maria Marin e outros dirigentes representaram tão elucidativamente), pintar o rosto com as cores do país, imitando índios varridos em outros tempos, carregar faixas com todo tipo de frase (interesse público ou particular) e marchar, caminhando e cantando e seguindo a canção por grandes avenidas brasileiras, algumas até com nomes de marechais. Que bonito! Que beleza saber que o gigante acordou e se revolta contra tudo – o que significa que não se revolta e que ainda cochila…
Que a situação não está fácil, sabemos todos. Pelo menos desde que nascemos, porque não é cena inédita que num almoço de família um pai ou um avô ou uma mãe lamente sobre o preço das coisas, a violência, a fila na saúde pública ou qualquer outro aspecto de nosso país. Tenho a impressão que desde que o Brasil foi inventado, dia após dia, com pequenos intervalos, apresenta uma piora, desce um degrau, fica um pouco mais doente. E toda vez que ouvimos este ano não vai ser fácil, é verdade, e é sempre pior. “De que me vale um saco cheio de dinheiro pra comprar um quilo de feijão?”, música de Chico Santana lá de 1977. Pensa, Beth Carvalho cantava isso há 39 anos.
Para mim, as informações honestas sobre a economia nacional partem das donas de casa. Sim, são elas que sabem o que é verdade e o que é invenção, marketing, fantasia, alucinação, enganação. Eu mesma posso ser uma consultora confiável para vários assuntos nesta área. Acho que sei mais sobre a realidade que qualquer artigo publicado na Carta Capital, por exemplo. Explico. Tenho um nível de vida bom: plano de saúde, escola particular para minha filha, taxa extra de segurança no condomínio, doação de tempo e recursos para algumas fatias da sociedade que têm menos do que eu. Ah! E também pago impostos. Pago tudo dobrado. Por que sou uma louca endinheirada que não sabe o que fazer com suas verdinhas? Não! Sou obrigada aos impostos e também à contratação dos serviços particulares, porque não recebo aquilo que me é prometido na descrição dos tributos. E isso faz de mim uma economista? Não, a universidade (pública se tudo desse certo ou particular como na maioria dos casos) faria isso. Eu sou uma sobrevivente em nossa economia, sou uma especialista no equilíbrio de pratos, uma criativa na arte de vender o almoço para comprar o jantar; como a grande maioria nesse país sei quanto custam as coisas e os caminhos das cifras que trilharam para chegar uma semana após a outra aos seus valores.
É desagradável entrar no mercado e saber que uma couve-flor custa quase dez reais. Adoro couve-flor, mas faço a troca, procuro por salada mais barata. E assim sigo todas as semanas, substituindo tudo o tempo inteiro: produtos, preferências, marcas, planos, vontades, lazeres – a empobrecer o presente e comprometer o futuro. Nada parece ter explicação, hoje não compro couve-flor por quase dez reais, amanhã não a comprarei por quase doze e assim por diante. As coisas não vão bem, eu sei, minha vizinha sabe, todo mundo sabe, cada um dentro da própria experiência.
E os outros problemas? Eles são tantos que nem sei por onde começar, nem sei se devo começar, corro o risco de deixar este artigo de um tamanho impróprio. Tivesse eu o poder da síntese e da condensação tudo estaria resolvido. E por falar nisso, que tal aquelas pessoas que umas semanas atrás trataram de gritar com o Chico Buarque na rua? Ou aquelas que vaiaram e ordenaram que o filho do Lula fosse embora de um restaurante? Ou, ainda, os que gritaram com o Mantega num lugar em que ele estava? Um exemplo de síntese, um mau exemplo de síntese. Os incivilizados de todos os casos resolveram com meia dúzia de gritos e barbaridades resumir seus descontentamentos. É como se estivessem contidos por uma represa construída pela Samarco e de repente todas as suas urbanidades forçaram a comporta e ao sair com a força de suas frustrações varressem o que estava na frente, transformando em lama e lixo o que a humanidade construiu embasada em conceitos como respeito, tolerância, democracia, civilidade. Razões, atitudes e consequências, tudo triste demais, tudo exemplo do que estamos nos tornando.
É nessa mesma onda que surfa uma parte igualmente vergonhosa de nossos compatriotas. Aqueles que alcançaram fortuna e glória recentemente (depois de um golpe, uma tacada certeira, muito trabalho ou da morte de parente rico) sem se preocupar com os satélites (agora super artificiais) que giram em torno de nós: cultura, informação, filosofia, educação, artes. Não experimentaram a evolução humana, não conheceram o que importa de verdade como valor e os diferenciam, ou poderia os diferenciar, como pessoas. Estão por aí, a comprar carros com muitos cavalos e decibéis de potência, portando-se como animais durante as refeições, a falar barbaridades em seus perfis, a fotografar e estampar a casa nova de Miami (piscina, quartos, garagem para cinco carros, relógios caros e nenhum livro). O poder econômico dessas pessoas é capaz de comprar seus lugares e garantir que influenciem a ordem das coisas, que ocupem espaço na formação de nossas crianças e que reafirmem a cada barbaridade dourada ou de oncinha que o que vale de verdade é ter e não ser. Os reis do camarote estão por aí a estuprar a sociedade com seus carrões blindados, suas falas altas e toda a ostentação constrangedora dos pobres de espírito. Nem desconfiam que chique mesmo é poder usar transporte público, não citar o preço do relógio e falar com polidez. Nouveau-riche brasileiro é importante para o giro da economia e nocivo para o progresso da agremiação.
Talvez eu precisasse falar aqui da crise moral em que estamos enfiados, de como as instituições não inspiram nada além de horror para quem mantém a dignidade ou inveja, para quem cultiva esse tipo de vontade. É difícil descobrir que os cadernos políticos dos jornais se transformaram em páginas policiais. É incompreensível viver na base do salve-se quem puder. É desestimulante não ver opções em partidos. As urnas não nos dizem nada e aprendemos a ver as palavras bonitas e os ajustes perfeitos dos planos de governo como mentiras deslavadas que nem podem ser contestadas. A moral já era, deu lugar ao politicamente correto, que nega o conteúdo e se concentra na forma. Preceitos e honestidade escorreram para a classe dos substantivos mortos, que não são mais usados e logo desaparecerão da língua. E isso é, num só tempo, causa e consequência do que vivemos.
A amargura do texto pode enganar e fazer parecer que continuar no Brasil é para mim uma escolha ou uma resistência ou uma vontade sem medida de fazer tudo mudar. Não. Continuar por aqui, é simplesmente o reconhecimento, temporário espero, da falta de possibilidade de viver em lugar melhor. Assim que for possível, vou para o aeroporto, não apagarei a luz porque sei que muita gente boa ainda estará por aqui. No meu destino sonhado, trabalharei, comprarei couve-flor, andarei de ônibus e não precisarei ter, apenas ser de forma íntegra.
Adriana Sydor – Revista Ideias|172|Travessa dos Editores