© Canini
O hino do Rio Grande do Sul estava quase pronto, letra e música. Faltava um refrão. Tinha que ser algo bom, que arrebatasse os corajosos, encorajasse os covardes, animasse pessimistas, curasse moribundos, alumiasse horizontes. As sugestões choveram até que apareceu um que acalmou as coxilhas: “Sirvam nossas façanhas de modelo a todo o Universo”. Um delírio ecoou, até o gado vibrou. Era sob medida, dava a real dimensão da nossa capacidade de luta e resistência. Nele cabia, em apenas três linhas, todo o brio pampiano. Ia além: abarcava várias das nossas ânsias – arrogância, jactância, petulância. E englobava tudo que se podia imaginar de prepotência no cosmos. Ninguém ia nos ganhar em orgulho, inda mais com uma melodia dessas de fundo! O problema é que havia gente de bom senso ouvindo. E esses mais discretos pediram: “Menos, gente, menos.” Não houve outro jeito senão abaixar um pouco a crista da canção. “Sirvam nossas façanhas de modelo a toda a nossa galáxia.” E não é que funcionava? Estropiava um pouco a métrica mas, sim, já não era mais um refrão tão excessivo. Porém, bastou ser ensaiado e cantarolado algumas vezes e lá veio a modéstia exigir algum comedimento. Não ficava bem gritar ao espaço tamanha empáfia. Vai que houvesse vida inteligente por aí e essa inteligência sideral se sentisse, digamos, provocada. Melhor reavaliar o júbilo pela nossa tradição guerreira. O mais sábio dos poetas da ocasião consertou. “Sirvam as nossas façanhas de modelo a todo o Sistema Solar.” Perfeito, não extrapolava nada, nossa influência sabia o seu lugar, afinal! E o canto entoou uníssono, um coral de guascas em aprovação. Bonito aquilo. Mas. Olharam feio pro bagual que discordava de estrofe tão apaziguadora. Ainda passava da conta. Discutiu-se muito, cantores e compositores rearranjando o estribilho final, rédea curta na bravura. A contragosto, chegou-se a um consenso. Doloroso, de tão redutivo. “Sirvam as nossas façanhas de modelo a toda Terra.” Ooohhhhh!, um murmúrio contrariado percorreu a vastidão. Tal concessão destoava da raça, ameaçava a harmonia da música. Até que uma voz soberana, herdeira da cautela gaudéria, sentenciou, numa baforada de palheiro: “Mesmo contido, tá bom assim. Não mexe mais no hino.”
(Publicado pela primeira vez em 18/9/09, republicado a cada data farroupilha)