Ruy Castro – Folha de São Paulo
O empregado abriu o portão da casa em Guarujá e disse que o presidente (na verdade, ex) Jânio Quadros me esperava. Estávamos em novembro de 1983, e Jânio acabara de lançar um livro de contos, que alegava ter escrito em uma semana. Era sobre isso que eu ia ouvi-lo para a Folha. Antes mesmo de dizer bom-dia —eram 11 da manhã—, perguntou-me o que eu queria tomar.
Jornalistas não devem beber em serviço, mas quem resistiria a um convite para beber com Jânio Quadros? Respondi, tibiamente, “Vodca, presidente, se tiver”. Ele ergueu um olho: “Vodca? Interessante. Acabo de voltar da URSS, onde viajei pela Transiberiana. Vamos ver o que temos aqui de vodca”. Abriu uma porta de correr e o que havia ali de vodca abasteceria toda a Transiberiana ou a própria URSS. E assim começamos: eu, com uma garrafinha de Wyborowa; ele, com um litro de Cutty Sark.
Duas horas depois, zeradas as garrafas, eu já tinha o que precisava sobre sua estreia na literatura. Mas Jânio ordenou que ficasse para almoçar -”Eloá [sua mulher] insiste!”, garantiu. E, assim, à mesa, seguimos discutindo literatura (que, para ele, consistia no uso das ênclises, próclises e mesóclises), refrescados por um suprimento de cerveja que parecia saído de um carro-pipa da Antarctica estacionado debaixo da janela.
Findo o almoço, ensaiei uma despedida, mas Jânio mandou vir licores e, de copinho na mão, guiou-me numa excursão por suas estantes, vergadas de livros de direito -e, aí, sim, num canto, um nicho contendo uma linda coleção de romances policiais ingleses. Fã do gênero, cumprimentei-o por ela, e só então ele me deixou ir. Dois anos depois, Jânio elegeu-se prefeito de São Paulo e, em 1992, morreu aos 75 anos.
Nesta quarta, 25, tivemos seu centenário de nascimento. Ninguém, com razão, se lembrou de sua literatura.